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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Da fartura às cinzas

O Carnaval é um tempo “gordo”, de fartura e fritos, de excessos e comportamentos desmedidos.

Um tempo de máscaras onde se podem esconder as verdadeiras identidades, para fazer de conta que se é mulher, sendo homem, que se é palhaço, quando habitualmente até nem se encara as dificuldades com humor.
O Carnaval é tudo isto e muito mais. Um tempo para a comunidade abrir os seus armários de segredos e libertar os seus fantasmas. Uma catarse necessária, que antecede um outro tempo, para os cristãos de introspecção, meditação e penitência, a Quaresma.
Se o Carnaval é um tempo de fartura, de exaltação dos prazeres mundanos, a quarta-feira que lhe segue tem sentido contrário. O Dia das cinzas, ritual que os católicos simbolizam com a imposição de um sinal de cinza, confronta o ser humano com o efémero da vida. Afinal, viver é apropriar-se de um tempo limitado, onde contam menos os bens que se acumulam para si, do que o bem que se faz aos outros.
Entre o Carnaval e a Quaresma, o calendário marca uma transição entre a fartura e a pobreza, entre o brilho das lantejoulas e o cinzento do quotidiano. Para alguns, essa transição nunca é sentida, porque vivem sempre no disfarce da máscara, falseando a vida com exageros, escondendo as dificuldades sob uma aparência de sucesso. Também há quem não consiga aproveitar o espírito de brincadeira que o carnaval proporciona, demasiado afogado em tristezas e dificuldades, incapaz de encarar a vida com optimismo.
O Carnaval e a Quaresma são dois tempos fortes do calendário onde a comunidade revela duas faces distintas, agora mais foliona, depois mais recolhida. No exagero ou na simplicidade, com disfarces ou confrontados com a realidade, Carnaval e Quaresma são tempos de revelação.
Neste tempo de folia, os açorianos aproveitam para se dar a conhecer, dançando, teatralizando a vida em sociedade, batalhando com água ou com confetis. Depois, cansados da festa, regressam a casa, finda a terça-feira gorda, para enfrentar o quotidiano, desta vez sem máscaras, e reencontrar a alegria na partilha dos afectos e nas pequenas vitórias diárias, sempre que se ultrapassam dificuldades.

(publicado no Açoriano Oriental de 15 Fevereiro 2010)

Sobreviver

 

 

É difícil imaginar como se pode sobreviver a uma catástrofe que mata milhares de pessoas, que deixa inúmeras crianças sem pais e fragiliza a vida de tantas famílias. Que fazer numa cidade em ruínas, onde se perdeu o traço das ruas e se desconhece como obter comida? Como sobreviver sem violar as regras do respeito pelo bem comum ou usar da força? Aguardar pacientemente é deixar-se morrer, esperar que alguém responda aos pedidos de ajuda, pode ser desistir de viver.
O que mais aflige, quando se vêem as reportagens sobre o pós-sismo no Haiti, para além da fragilidade humana, da instabilidade da existência, é a importância que a organização social assume na regulação do quotidiano. O simples traçado de uma rua estrutura o comportamento de quem nela tem de circular. Após o sismo, amontoam-se paredes caídas, desaparece a história construída das aldeias e o desespero toma conta dos esfomeados. Tudo se transforma num bem de primeira necessidade. A posse de uma caixa de velas ou de duas garrafas de água pode ser motivo para lutas sangrentas.
Quando falha a organização e se perde o sentido das regras sociais, o caos instala-se e apenas funciona o “salve-se quem puder”. Os mais fracos são esquecidos e espezinhados e vale a astúcia e a violência, daqueles que tudo fazem para chegar em primeiro lugar.
Sobreviver em tais condições é uma prova de resistência à capacidade do ser humano em sofrer, lutar e se reerguer.
As notícias anunciam que uma pessoa foi resgatada com vida de entre os escombros. Alguém que sobreviveu debaixo de muros caídos, apenas porque bebeu água ou teve acesso à prateleira de um supermercado destruído.
Imagino a força de espírito de quem se manteve sem comunicar durante tantos dias; de quem deve ter visto a morte como a saída mais provável para a condição em que se encontrava e, mesmo assim, acreditou que valia a pena lutar; de quem encontrou a calma e não sucumbiu ao desespero do abandono, à angústia de estar perdido entre ruínas, imaginando, quem sabe, um mundo totalmente devastado.
Sobreviver não é só manter vivo o corpo, mas acreditar, ter fé, manter vivo o espírito e não se anular no sofrimento ou na fragilidade humana.

A tradição já não é o que era

Esta é uma daquelas expressões que merece reflexão.

Se a tradição significa transmissão, quando se conclui que esta já não é o que era, falhou a passagem de testemunho ou os conteúdos culturais foram sendo adulterados, alterados ou até destruídos.
A tradição enraíza, conta a história de um povo, situa-nos numa cultura e, quando partilhada, identifica-nos como membros de um comunidade.
O Carnaval é, no contexto do calendário tradicional, um tempo de transição importante que, à semelhança do mês das almas, liga o mundo dos vivos ao dos mortos, e significa fertilidade, renovação. Tradicionalmente, este é um tempo de inversão e de excessos.
Nos Açores, faz-se a crítica social de forma teatralizada, nos bailinhos na Terceira; exagera-se o consumo dos fritos, com malassadas ou rosas do Egipto de S.Miguel; e, de alguma forma, desrespeitam-se regras e afastam-se males de forma simbólica, atirando bombinhas e estalidos, agredindo com água na “batalha das limas” ou “assaltando” a casa dos amigos, mascarados com outras identidades.
Na terça-feira de Carnaval, a avenida marginal em Ponta Delgada transforma-se num campo de batalha. Uma tradição que, outrora, já foi uma guerra de flores e que em outras comunidades se faz com farinha ou até com tomates.
Para melhor proteger esta festa, o trânsito deveria ser fechado nesta artéria da cidade durante as horas em que os “guerreiros da água” procuram alvos nos passeios ou em cima dos camiões. Permitir que alguns automobilistas circulem para observar as lutas gera confusão, aumenta o risco de acidentes e pode levar a que a batalha de brincadeira provoque danos em viaturas.
Nos últimos anos, a autarquia de Ponta Delgada tem subsidiado os grupos que batalham em camiões. Um apoio que ajuda a manter o espectáculo das lutas, mas que devia ser regulamentado, para que não se perca o espírito de brincadeira e faz-de-conta que caracteriza o Carnaval.
As tradições são cultura oral, por isso, aprendem-se com os mais velhos. Mas, quando o poder político tem de apoiar uma tradição* para que esta não se perca, esse apoio deve garantir a preservação da herança cultural, sob pena de essa tradição deixar de ser o que é, um traço da identidade de um povo.
(publicado no Açoriano Oriental de 1 de Fevereiro 2010) 
* Ao que parece, a Câmara de Ponta Delgada impôs a não utilização de limas por parte dos camiões que "subsidia", ao que parece, para evitar danos sobre viaturas! Porque não se fecha o trânsito e se limita o estacionamento durante a "batalha" e se deixa que a tradição aconteça? O custo da parafina é elevado e quem sabe a autarquia podia apoiar para que os jovens pudessem manter esta tradição, que até pode ser um cartaz turístico. Se assim não for, não tardará muito teremos de deixar a designação "batalha das limas" e passar a designar "batalha dos sacos".
 

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