Silêncios indignos
A pedofilia é certamente um problema, com séculos de existência, que proliferou de forma impune, numa sociedade onde se silenciou, durante demasiado tempo, a sexualidade.
“Não se fala, fica feio, é pecado”, diriam os nossos avós perante a curiosidade e o mal-estar de muitas crianças. Umas demasiado protegidas para entenderem o seu próprio corpo, outras demasiado vulneráveis para se poderem defender dos abusos de adultos, supostamente responsáveis pela sua educação.
O silêncio, imposto sobre o mundo da sexualidade, criou fantasmas, alimentou comportamentos desviantes e ocultou, num mundo de segredos, histórias de vida marcadas pela humilhação, a exploração e o sofrimento calado.
Fizeram notícia os casos de pedofilia na Bélgica, o processo da Casa Pia ou da garagem do Farfalha. E continuam fazendo notícia as prisões que envolvem pedófilos, supostamente cidadãos exemplares.
Dar visibilidade a estes casos é urgente, não pelo impacto mediático que isso significa, mas porque revela uma sociedade que condena o abuso e a exploração sexual, que defende os menores e advoga uma sexualidade responsável, equilibrada e informada, parte integrante e essencial do ser humano.
O pedófilo revela uma relação doente, desequilibrada e, por ventura, traumática, com a sua sexualidade. São adultos que carecem de apoio e acompanhamento, mas que constituem uma ameaça perante menores indefesos, fragilizados em geral pela condição social em que vivem ou pela ausência de apoio afectivo e familiar.
Por tudo isto, não é aceitável, nem admissível, proteger estes agressores e abafar o sofrimento das vítimas. Não é digno silenciar as denúncias de quem foi envolvido, de forma indigna, em jogos de prazer, para satisfazer fantasias de adultos desequilibrados, sejam estes importantes figuras políticas, simples funcionários, criminosos com cadastro ou sacerdotes.
Particularmente, a Igreja não pode continuar a pactuar com este silêncio indigno, como aparentemente fez durante décadas. Perante inúmeras denúncias, na Inglaterra, no Brasil, nos Estados Unidos e por ventura em Portugal, os mais altos responsáveis da Igreja limitavam-se a deslocar os visados e a silenciar as vítimas. Não é admissível que se defenda o mandamento máximo do “amar os outros como a si mesmo” e depois não se condene, publicamente, quem usou os outros e matou neles a capacidade de amar.
Fazer tabu, trancar no “sótão” do que não se diz, porque é feio, fonte de pecado, é criar fantasmas e deixar por resolver problemas que atormentam esses adultos.
Mais revoltante do que ver sacerdotes e bispos, com idade para serem avôs, transformados em “ninguém”, envoltos nos seus próprios fantasmas, é ouvir as vítimas que, durante anos, calaram as agressões de que foram vítimas na adolescência.
Aos poucos, a Igreja reconhece a culpa, mas isso só não basta. É fundamental que assuma e aborde a sexualidade como uma dimensão humana, inclusive quando está em causa o celibato. A sexualidade está longe de se reduzir às relações sexuais.
É importante educar as crianças e os jovens, desde cedo, para que aprendam a conhecer o seu corpo e a respeitar o dos outros. Não podemos recear o impacto da educação sexual, porque só quem conhece dá o devido valor à intimidade como expressão de afectos e exalta a dignidade do ser humano.
(publicado no Açoriano Oriental de 29 Março 2010)