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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

O desamor

“Ele está tão diferente!”, “Ela é a sombra da mulher que conheci”.

Ao fim de alguns anos de vida em comum, há quem não reconheça a pessoa com quem vive há vários anos. O que aconteceu entretanto? Porque motivo ele ou ela parece diferente ou se comporta como se já não estivesse em sintonia, ligado à vida que um dia decidiram montar os dois em conjunto.

O desamor é um processo de desgaste lento, que corrói as fundações de uma relação. Vai destruindo por dentro, como as térmitas fazem na madeira, muitas vezes sem ninguém se aperceber. Fragiliza o amor, sempre que o sofrimento não é partilhado; desfaz aos poucos as ligações, em cada ausência não justificada, em cada traição não perdoada. Aos poucos, perde cor e consistência, torna-se poroso e deixa de ser capaz de suportar a mínima frustração.

Mas, se o desamor pode corroer por dentro, há quem nunca se aperceba disso e viva como num conto de fadas, dentro de um castelo de fantasia, onde está sempre tudo bem ou então silencia comportamentos violentos, procurando explicação para as humilhações diárias, que diz aceitar por amor.

Aos poucos o desamor instala-se e a relação fica cada vez mais ténue, um traço que outrora era um cabo, transforma-se numa linha quebradiça, que reage à mínima contrariedade.

Porque motivo há cada vez mais casais que se desencontram no amor? Machado Vaz diria que herdamos uma visão romântica da vida amorosa, povoada de mitos e fantasias, que não tem em conta a realidade e a pessoa que é o outro. Apaixonados, inebriados por se acharem diante da alma gémea, dificilmente reconhecem os defeitos ou se atrevem a aprofundar os motivos do desentendimento.

É importante crescer numa relação amorosa. Aprender a descobrir as diferenças e a gostar do outro na sua individualidade. Construir um espaço comum, sem destruir os recantos da privacidade é um processo contínuo, feito de alguns grandes momentos e de muitos pormenores.  

O desamor é sempre um sintoma de frustração. Porque se criaram expectativas que não tinham fundamento e se ficou à espera que o outro mudasse com o tempo. Porque ninguém ensinou a ser tolerante diante das perdas ou educou para que se reerguesse depois de falhar, lida-se mal com a realidade, que raramente corresponde ao sonho.

O desamor é também um sinal de como se pode viver apaixonado por uma imagem e, um dia, acordar diante da pessoa, em torno de quem se construiu essa fantasia.

No silêncio da rotina sem sabor, o desamor instala-se e corrói como a térmita, mostrando que, numa relação, a preguiça e a acomodação são pragas a combater.

O amor é possível, mas exige que sejamos realistas e procuremos descobrir no outro a sua essência. Exige que se conciliem diferenças, se potenciem virtudes e se transformem as fraquezas individuais em forças partilhadas. O que daí resulta, nem sempre é perfeito, mas enquanto se procurar essa ligação, vive-se numa sintonia que afina com o tempo e constrói um espaço, uma relação, onde nos sentimos em casa e nos movemos sem esforço.

O desamor pode não acontecer, se todos os dias o amor for renovado e reinventado.

(publicado no Açoriano Oriental, 19 Abril 2010)

Os muros que nos separam

Foi notícia de jornal. Uma manifestação de moradores, de um empreendimento a custos controlados, reclamou da presença de alguns vizinhos, a residir no mesmo bairro mas que, como se podia ler nos cartazes, não estariam a pagar o custo dessas habitações ao banco.

Para os manifestantes, esses outros não podiam ter o direito de morar na mesma tipologia de casas. Afinal, se o governo pretendia apoiar essas famílias, que o fizesse num outro lugar, quem sabe na periferia das cidades, em lugares esquecidos como o bairro de Sto. António, vulgo, Peixe Assado. Aí não incomodam. Se têm problemas, ninguém fica a saber e se os filhos não vão à escola ou as mães não têm com quem os deixar, é um problema que apenas a eles diz respeito.

Para os moradores que se manifestavam, auto apelidados de trabalhadores, com compromissos financeiros, o mundo divide-se pelo menos em dois. Os que têm trabalho, famílias supostamente estruturadas e os outros, que vivem de prestações, desempenham tarefas pouco qualificadas, que vivem em famílias numerosas, por ventura, tendo por rendimento o salário mínimo.

Não são dignos de morar paredes meias, quem vive de apoios do estado e quem possui um emprego, mesmo que de baixo rendimento. Houve mesmo quem dissesse que esta convivência iria desvalorizar o bairro, como se a qualidade da comunidade se medisse apenas pelos rendimentos dos seus moradores. O valor das casas iria baixar e um bairro de custos controlados, ganharia o rótulo de bairro social.

Mas que modelo de sociedade pretendem estes manifestantes? Em que bas

es fundamentam o prestígio da comunidade onde residem? No estilo das casas, nos acabamentos ou na conta bancária dos moradores? Não terão perdido o sentido mais profundo do que é viver em comunidade, que sente a solidariedade na vizinhança e promove iniciativas colectivas?

Que comunidade pretendem construir esses moradores, que se recusam a partilhar o mesmo espaço com quem vive em dificuldade e se arrogam o direito de julgar os outros, pelo modo como se vestem ou pelas compras que trazem da mercearia.

Integrar, incluir, implica aceitar e cooperar. Não é compatível com individualismo ou espíritos farisaicos que se julgam imunes às dificuldades. O que aconteceria a um desses moradores, se por ventura deixasse de poder pagar a prestação da casa e passasse a ser ajudado pelo Estado? Será que também ele deveria abandonar o bairro?

A solidariedade não é uma prática administrativa, mas uma forma de relacionamento social. Não depende do montante das dádivas, mas da construção de projectos comuns. É uma acção de duplo sentido, que compromete quem dá e quem recebe.

Dificilmente seremos uma sociedade coesa, escorraçando vizinhos e apontando o dedo a quem recebe apoios sociais do Estado, como se os pobres devessem andar com rótulos. Todos saberiam quem são, nas escolas, nos empregos, na rua e, particularmente nos bairros.

Há mesmo quem afirme que tudo seria mais fácil se fossem distribuídas senhas de comida, rações de bens essenciais, de acordo com os critérios de quem paga. Como se a pobreza fosse apenas fome e sinónimo de incapacidade.

Há muros que ainda nos separam. Alguns, visíveis como as paredes de um bairro, outros que se escondem nas palavras e nos gestos que dividem o mundo em “os nossos” e “eles”, vizinhos sem nome que dão má fama ao bairro.

(Publicado no Açoriano Oriental de 12 de Abril 2010)

Desculpar ou perdoar

Aparentemente são dois verbos de significado idêntico ou pelo menos utilizados com o mesmo propósito. Mas, na realidade, representam atitudes diferentes e reflectem o sentido profundo das relações humanas.

Desculpas são também justificações, para não fazer ou faltar a um compromisso. O povo costuma dizer que há desculpas esfarrapadas, pouco consistentes, que escondem as verdadeiras razões.

Desculpa, como a própria etimologia revela, é um pedido de reparação, uma “borracha” que se procura passar por cima de uma qualquer situação e, assim, ilibar alguém da “culpa” ou do “erro” cometido. Mas, quem passa a vida a pedir desculpa dificilmente muda de comportamento, apenas vai usando o corrector numa vida repleta de erros.

O perdão é bem diferente, porque não repara, renova. Não elimina as aparências, mas restabelece a ligação entre as pessoas. Perdoar significa “para dar”, ou melhor, devolver o amor entretanto perdido e recuperar uma ligação afectiva que se rompeu devido a uma ofensa, uma traição ou até um mal-entendido.

O perdão é mais do que uma desculpa, é um acto de amor e de reencontro. Um abraço que reconforta e aconchega quem antes estava distante.

Perdoar não é esquecer, mas renovar o amor, assumindo as marcas que o sofrimento deixou. Perdoar não é fazer de conta que nada aconteceu, mas aceitar o outro com as suas fraquezas e, também, reconhecer a sua capacidade de amar.

Nem sempre isso acontece quando apenas se desculpa. Aparentemente, ficou tudo esquecido mas, na realidade, vão-se guardando em memória, num arquivo de ódios contidos, as mágoas entretanto vividas.

Afinal, desculpas ou não? Desculpar é muito mais um parêntesis do que uma renovação. Por debaixo do corretor, continua a marca do erro.

Perdoar é intenso e profundo. É íntimo e espiritual. O perdão não desculpa, nem esquece, mas também não recupera os erros do passado, para os devolver. Quem perdoa liberta o outro e liberta dentro de si o amor, entretanto contido, escondido e quantas vezes magoado. Um peso que alguns carregam durante anos, por orgulho, raiva e incapacidade de abrir as comportas do coração. Perdoar é abrir caminho para o amor e reconciliar-se com o outro.

Se desculpar até pode ser uma rotina, que pouco ou nada transforma e que alguns nem se dão ao trabalho de verbalizar, limitando-se a dizer que sim com a cabeça, “Estás desculpado”. Perdoar renova, recupera laços, liberta quem dá e quem recebe, transforma o não dito em confissão, coloca as ofensas em palavras num confronto directo, e por vezes difícil, com a dor provocada e o sofrimento calado.

Desculpar é calcar a mágoa para dentro de uma mochila que, com o tempo, dificulta o caminhar. Perdoar é desenterrar essas mágoas, libertar o outro num abraço e seguir em frente.

A Páscoa não é um tempo de desculpas, mas de perdão. Não é um tempo de “faz de conta, já passou”, mas de intenso reencontro e libertação.

O Amor que cresce não é o que se guarda, mas o que se dá.

 

(publicado no Açoriano Oriental, a 4 de Abril 2010)

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