Misses em ponto pequeno
Num dos canais de televisão porcabo, dedicado sobretudo ao entretenimento, há uma série que dá por título “misses em ponto pequeno”, um programa que é anunciado com frequência no intervalo de outras séries.
Considero que a prática que suporta esse programa é, no mínimo, um exemplo acabado do que são maus-tratos sobre crianças.
Maltratar não é apenas bater ou negligenciar na alimentação, nos cuidados de saúde ou na educação. As crianças também são maltratadas quando não têm condições para crescer como crianças.
Maltratar uma criança é impedir que descubra o mundo, à sua maneira, de forma simples, fazendo as perguntas que todas fazem: porque é que as árvores são verdes e o céu azul, como nascem os bebés ou porque é que os meninos são diferentes das meninas?
Maltratar é transformar uma criança num mini-adulto, seja por via dos comportamentos, das obrigações ou da responsabilidade que lhe são exigidos.
“Misses em ponto pequeno” apresenta meninas que participam em concursos de beleza. Meninas entre os três e oito anos, a quem roubam a infância, que são sujeitas ao mundo de fantasia dos seus pais e mães, indiferentes ao dever de respeitar a dignidade e o equilíbrio emocional das suas filhas.
Algumas das imagens, que passam nesses pequenos vídeos de apresentação, são bem o exemplo da violência a que são sujeitas estas “misses” de palmo e meio: esticam-lhes o cabelo em penteados de princesa, com laca e muitos adereços, para a seguir lhes devolver a chucha no intervalo das apresentações; fazem branqueamento de dentes e bronzeados artificiais e entre birras, são treinadas para fazerem um número no dia do concurso, como se fossem amestradas. E depois, é ver essas mães, treinadoras, aos pulos, gesticulando, completamente eufóricas, quando conseguem que a sua pequena “miss” receba a coroa de mais bela.
Maltratar uma criança é roubar-lhe o direito de crescer como criança.
Ser pai ou mãe é um privilégio, uma oportunidade para aprender e descobrir, com os filhos, o mundo que nos rodeia e onde cada um de nós tem um lugar, um projecto para desenvolver. Aos pais cabe o dever de ajudar a crescer, ensinando e aprendendo com os filhos a melhor forma de serem pessoas saudáveis e equilibradas. Essa é a sua principal missão. Uma missão que está consagrada na convenção universal dos direitos da criança.
Os pais que se esquecem desse dever, desrespeitam os direitos das crianças, quando nelas projectam sonhos ou fantasias que não realizaram nas suas vidas, lhes impõem um estilo de vida, sem ter em conta as suas necessidades ou usam e exploram as qualidades dos filhos para alcançarem o seu próprio sucesso.
Numa era onde todos reconhecem que o trabalho infantil é uma violência que impede as crianças de crescerem de forma adequada, não faz sentido que adultos, supostamente responsáveis, destruam a infância de meninas, que ainda dormem de chucha abraçadas a um ursinho de peluche, amestrando as suas capacidades para satisfazer fantasias de adulto.
Como revelam todos os estudos sobre maus-tratos infantis, os agressores são na sua grande maioria os pais biológicos, que se julgam donos dos filhos e se esquece que a paternidade ou a maternidade é uma relação de guarda, não de posse.
“Misses em ponto pequeno” é um triste exemplo de como há adultos que maltratam crianças, usando lantejoulas e penteados, vestidos de baile e saltos altos.
(publicado no Açoriano Oriental, 11 de Julho 2011)