Saudade
A palavra saudade é um luto, uma aflição, é um cortinado roxo que cobre o coração. Assim reza a canção que marca a identidade açoriana, cantada em quase todas as ilhas.
Estamos ligados pela saudade e irmanados nesse sentimento num país que fala português. Até na canção se pergunta, "quem seria que a inventou" essa palavra saudade?
Saudade é muito mais do que uma emoção, do que um sentimento, é sobretudo uma memória, uma recordação e uma atitude.
Os portugueses alimentam a saudade, cuidam dela como se fora herança de família, património nacional.
Cantam o fado e recordam a história das descobertas, que contam aos jovens como prova do que fomos, do que fizemos, do que demos ao mundo.
Memória de um tempo longínquo, a saudade é também memória de um presente.
Temos saudades de nós mesmos, desse português heroico que hoje raramente se afirma ou bate o pé, por ser estruturalmente obediente, cumpridor, bom trabalhador, diligente, disponível.
Vivemos com saudades de nós mesmos, desse português de sucesso, e festejamos os feitos de jogadores, que ganham milhões em clubes estrangeiros, ou de treinadores que dão conferencias de imprensa em línguas estrangeiras, escondendo no sotaque as suas origens.
Temos saudades de nós mesmos, por isso, os nossos governantes na república ficam ofendidos porque a Grécia conseguiu negociar sem perder a sua identidade, perante a imposição de países mais fortes, mais ricos e poderosos. Afinal, era possível reagir e reivindicar e não se agachar diante da austeridade imposta. Bastou que um dos países fundadores deste continente europeu fizesse braço de ferro, para que Portugal reagisse, qual menino bem comportado que vê o reguila obter favores da professora.
Temos saudades, quase em permanência, do passado, de sermos um povo de brandos costumes, que chora e canta a desgraça. Não nos libertamos do que fomos e isso impede-nos de afirmar o que queremos ser.
Aos empreendedores temos dificuldade em dizer, "fiquem, mudem este país, façam diferente". Aos jovens, criamos problemas, desconfiamos da sua competência, das suas ideias, e dizemos-lhes com a superioridade típica de velhos do Restelo, "hás de lá chegar um dia, mas primeiro vais receber o salário mínimo, num emprego provisório, pouco importa se és licenciado ou mestre, se tens o doutoramento ou uma especialização, tens de saber o que custa a vida".
Inchados de orgulho, nem reagimos a tantos que partem com um nó na garganta. Hoje dez, amanhã vinte, vão procurar outros lugares onde não se sofra deste mal, onde se olhe mais o futuro do que o passado.
A saudade é traiçoeira. Enquanto nos aquece a memória e reconforta no passado, atrofia a energia e reduz a vontade para transformar o presente e lutar por um futuro diferente.
Vira e volta a saudade, vira e volta a saudade, é como uma onda que nos toma e envolve o coração, enquanto aquece as memórias, vai congelando as atitudes e bloqueando o país, a região.
Ser português é sofrer desse mal, de ter saudades de si. Saudades do que fomos, do que tivemos ou fizemos, resistindo ou esquecendo o presente que nos desafia e, sobretudo, deixando morrer o futuro que devíamos estar a construir.
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 24 Fevereiro 2015)