Americanices e Globalização
A palavra globalização é recorrente no discurso de quem analisa os fenómenos mundiais, nomeadamente o desaparecimento de características nacionais ou locais, em prol de práticas culturais importadas, que, apesar de desenraizadas, encaixam, "sem dor", nas vivências de outros povos.
Neste mês de novembro assistimos ao Halloween, ao dia de Ação de Graças e à Black Friday, que acontece no dia a seguir. Todas estas manifestações, tipicamente americanas, transformaram-se em produtos de exportação cultural, que nos chegam embrulhados de fantasia, doces e consumo, e rapidamente se infiltraram no nosso quotidiano.
A economia agradece! Os empresários apressam-se a enfeitar as montras das lojas com teias de aranha e abóboras, ou anunciam descontos de "black friday". Até nas sobremesas, os doces com maçã ou abóbora surgem nas prateleiras dos supermercados e das pastelarias.
Quando foi do Halloween, houve quem questionasse porque se deixou morrer o "pão por Deus"? E porque razão, a seguir ao dia de Ação de Graças, feriado nos Estados Unidos, somos incentivados a consumir na "black friday"?
É mais um produto importado que faz vender, logo, consumir, e que gera sentimentos de "ganância", "corrida ao desconto". Compram-se objetos ou produtos, sem ter necessidade, imaginam-se prendas sem pensar nas pessoas, acumulam-se mercadorias, por menos umas dezenas de euros, que as associações de consumidores alertam, nem sempre corresponderem a verdadeiras baixas de preço.
Enfim, é o consumo que cega e faz esquecer que estamos perante uma invasão de produtos culturais importados. Esquecemos quem somos, para nos diluirmos numa forma de estar idêntica a outros e, assim, contribuímos aos poucos para a tal globalização, que julgamos ser uma questão de política ou economia internacional.
A identidade de um povo é um vaso de cristal, uma roupagem única que estrutura e diferencia, mas que se torna vulnerável, quando se perde a consciência de existir. Não é preciso viver isolado para a manter, nem é necessário radicalizar, para a afirmar. Basta apenas não a destruir e, sobretudo, ser capaz de a transmitir e construir memórias nos mais novos. Ter honra de viver e ser da terra que os nossos avós trabalharam e poder dizer, a quem nos visita, quem somos.
O dia em que não tivermos nada para dizer, por ventura nem para mostrar; o dia em que a nossa gastronomia perder significado e os produtos que a terra dá e o mar nos permite pescar, não fizerem parte da nossa restauração, não seremos diferentes dos demais destinos.
E, se as tradições, por exemplo, do Natal ou do Carnaval, não falarem da forma como interpretamos estes tempos e o sentido que representam no nosso calendário, as nossas crianças deixarão de ter memória do que é viver aqui, neste recanto do mundo.
Podemos e devemos manter boas relações com a América, temos lá muitos amigos e familiares, mas há nestas ilhas uma forma própria de estar, que foi construída ao longo de quinhentos anos de história e que, para nós, deve ter mais valor, fazer mais sentido, do que as americanices que o mercado consumista nos impinge.
Temos uma marca identitária, que encontramos na arquitetura, no formato dos campos ou das embarcações, na gastronomia e na religiosidade, no artesanato e nos ofícios, nas palavras e no cantar. E se não amarmos este património, acima de todas as influências, seremos uma amálgama sem forma, sujeita às influências e à vontade de outros.
Para respeitarmos os outros, temos de começar por gostar de quem somos e afirmar a nossa própria diferença, abrindo as portas aos demais, com orgulho e sem preconceitos de inferioridade ou medo.
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental, de 28 Novembro 2017)