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O (des)acórdão

Muito se escreveu e disse sobre o acórdão do tribunal da Relação do Porto que desagrava um crime de violência doméstica, alegando adultério por parte da mulher vítima.

Políticos, movimentos cívicos, articulistas em diferentes jornais teceram comentários ou simplesmente repudiaram o referido acórdão, alegando o retrocesso civilizacional que o mesmo representa.

A este movimento de repúdio, manifestações de rua e até uma petição com mais de 18 mil subscritores, os responsáveis da Magistratura reagiram tarde, com incómodo e alguma resistência corporativa, afirmando que estas reações não prestavam "um bom serviço nem para a justiça, nem para a defesa das vítimas", como referiu o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Nas suas palavras as sentenças dos juízes exigem, e cito: "sobriedade e vigilância semântica" e "a manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações da linguagem de subjetividade excessiva, não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência."

A violência doméstica é um crime público desde 2000 (Lei 7/2000 de 27 de Maio que alterou o Código penal), mas só em 2007, por força da Lei 59/2007 de 4 de Setembro, foi introduzido o crime de violência doméstica. Ainda mais recente, a Lei 19/2013, de 21 de fevereiro estabelece o Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à Proteção e à assistência das suas vítimas. Foram precisos muitos milhares de agressões e de mortes até que a sociedade portuguesa reconhecesse que, agredir não é um direito que assiste a maridos ofendidos ou esposas traídas, e que as vítimas não são objetos sobre quem se tenham direitos de posse.

O quadro legal que materializa esta defesa é recente, mas nada justifica as posições mais brandas que a Justiça teima em proferir, perante um crime doméstico, familiar, por ventura naturalizado em muitas casas e numa cultura onde ainda se diz: "quanto mais me bates, mais gosto de ti".

No crime de violência doméstica, há um substrato cultural, profundo, uma raiz violenta que mina as relações de género e condiciona o pensamento e as atitudes.

Mas nada justifica o (des)acórdão do Tribunal do Porto e a demissão da Justiça portuguesa perante os crimes de violência doméstica. Basta ler o relatório anual de monitorização da violência doméstica do Ministério da Administração Interna, de 2015, para verificar que, dos 34mil inquéritos de violência doméstica analisados entre 2012 e 2015, 78% resultaram em arquivamento, 4,7% em suspensão do processo e apenas 17,5% deram lugar a uma acusação. Recorde-se, a propósito, que apresentar queixa por maus tratos é, infelizmente, um sinal de exaustão de alguém que carrega uma vida de agressões. A lei protege as vítimas, permite condenar os agressores e não é preciso que haja "nódoas negras" para o fazer.

Certamente, que todos os juízes sabem os códigos penais, quase de cor. Mas, em alguns casos, falta-lhes formação em ciências sociais e humanas.

Os planos de estudos (Ex. Faculdades de Lisboa e Porto) abordam todas as espécies de Direito (Constitucional, Romano, Família, Internacional, Administrativo, Processual, Penal, Fiscal, Civil ...) mas esquecem que, os advogados e os juízes precisam de formação em Psicologia e Sociologia, para não agirem em função dos seus "estados de alma" e "crenças pessoais".

Não basta saber escrever, nem um acórdão é uma mera questão de semântica, como referia o Presidente do Supremo. Estão em causa valores e representações sociais, que não são forçosamente as do cidadão juiz, mas que enformam o sentido das leis que terá de aplicar.

Um juiz não faz a Justiça de um país, mas um (des)acórdão pode fazer a diferença entre o silêncio e o acordar da consciência cívica desse país.

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 31 Outubro 2017)

 

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