Escárnio e Maledicência
Quem não se lembra das "cantigas de escárnio e maldizer" das aulas de Português?
Mesmo não conhecendo o que significa "escárnio", o simples pronunciar desta palavra faz sentir a força negativa que transporta.
Escarnecer é "fazer pouco de alguém" através de conversas dissimuladas, muitas vezes em forma de gozo, onde se ridiculariza ou despreza uma pessoa ou um grupo/comunidade.
Nas "cantigas de escárnio" os autores falavam mal de forma encoberta, dissimulada, enquanto nas "cantigas de maldizer", a acusação era evidente e feita às claras.
A coberto ou às claras, ainda hoje o ser humano serve-se da maledicência para (se)desfazer de outrem, que não lhe agrada ou incomoda. Alguém que, por mérito próprio, lhe pode "roubar" uma posição na empresa ou na política, um adversário que não se consegue vencer no combate "às claras".
O escárnio e a maledicência, muitas vezes descarregadas em cartas anónimas ou em falsos perfis das redes sociais, são as armas dos fracos e dos medíocres que, não tendo mérito pessoal, científico ou técnico, montam esquemas para afastar quem os ultrapassa nestes critérios.
Quase ninguém escapa a esta teia do "falar mal", "denegrir" ou "escarnecer".
Bastaria ler as revistas de grande divulgação, que vendem tanto mais quanto maior for o "enredo", e cobram fortunas por exclusivos de fotografias cujo impacto atinge a dignidade de figuras públicas ou de referência.
Há sucesso garantido nesse tipo de notícia, porque há muitos praticantes da má-língua, que anseiam por conhecer pormenores, detalhes, sobre determinados outros, e assim poderem distribuir, em episódios de conversa, ao maior número de pessoas, num frenesim que lhes provoca uma verdadeira adrenalina: "já ouviste o que se diz de fulano?". "Ah não! Então é bom que estejas sentada, porque vou te contar...".
E assim começa uma tarde de amigas ou amigos.
Esta prática do maldizer tem outras ligas. É como no futebol, há quem ainda agora se iniciou e depois há os peritos, que não "brincam em serviço", para quem estes conhecimentos permitem urdir teias de poder. Um poder paralelo, desconhecido da maioria daqueles que se limitam a cumprir regras e a estar bem com a sua consciência.
Se mergulharmos nas relações humanas de uma grande organização, seja uma empresa ou um partido político, uma escola ou uma fábrica, rapidamente se perceberá que existem dois sistemas de poder: o formal, cujo conhecimento é imediato e que pode ser estudado através da hierarquia de posições; e o informal, perceptível a quem escute conversas de café ou de corredor e esteja atento às atitudes dos que, não tendo poder formal, influenciam mais que as chefias.
Como conseguem? Muito deste poder informal decorre dessa capacidade de "estar informado", que manipula dados pessoais, explora fraquezas e alimenta virtudes, quantas vezes não comprovadas, colocando quem lhe interessa em posições chave da empresa ou organização ou, pelo contrário, afastando determinadas pessoas desses lugares.
O escárnio e a maledicência só se evitam se os maledicentes forem deixados a falar sozinhos. Mas, há sempre quem dê ouvidos "às novidades"; quem compra a revista ou o jornal que traz na capa uma notícia "escaldante".
Qual grafiti pintado a spray na parede de um prédio, o escárnio ou a maledicência deixam marcas, que alguns nunca esquecem.
Escárnio, ao contrário da crítica, não esclarece e muito menos constrói relações saudáveis, seja na família ou na empresa.
A maledicência, que é prima da corrupção e filha da inveja, só se vence com informação objetiva e interconhecimento.
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental, de 19 Setembro 2017)