A porta das traseiras
A casa, enquanto espaço, é mais do que o lugar onde moramos. É um território que construímos à imagem do que somos, do modo como nos relacionamos com quem vive debaixo do mesmo tecto e com os outros, os vizinhos, os familiares, os amigos e todos os outros. Numa casa, há sempre recantos, lugares privados que cada um acaba por reservar para si próprio; lugares marcados pelo quotidiano, pelas rotinas diárias e por momentos bons ou maus que vão transformando a casa numa pele que se veste, para nos sentirmos protegidos, amados e, sobretudo, que nos faz ser nós mesmos.
Claro que há sempre quem nunca pare em ramo verde, ou porque a profissão assim o exige, ou porque a casa é entendida como um lugar de passagem, que dura como uma paixão, efémera, repentina, que se apaga tão depressa como se acende. Mas, para muitos outros, a casa é como uma pessoa e, tal como no amor, a primeira casa nunca se esquece. Aprendemos a conhecer e aceitamos os seus defeitos da mesma forma que as suas qualidades. Até mudamos hábitos para nos adaptarmos ao espaço onde moramos. É em casa que estamos à vontade e, se um amigo nos visita, o mais certo é entrar pela porta de serviço, pelas traseiras, considerada por outros, como a entrada dos empregados, a porta da serventia. As visitas ou as pessoas importantes, ou pelo menos para as que assim se consideram, a entrada faz-se pela porta da frente. Pelas traseiras, pedem-se os favores, fazem-se as trocas de bens e acode-se em hora de aflição. “Oh vizinha, acabei o açúcar, empresta-me uma chávena! Amanhã devolvo.” Sempre aberta, a porta da serventia é uma entrada sem cerimónias, por onde todos podem passar, calçados ou não, com roupa de trabalho ou quando regressam da missa. Aberta sobre a cozinha, lugar principal nas casas rurais, a porta de serventia é por onde se entra todos os dias. De vez em quando, batem na porta da frente. “Estranho! Não deve ser alguém conhecido, porque os amigos, que não fazem cerimónia, esses entram pelas traseiras. Deixa-me tirar o avental, dar um jeito ao cabelo e lavar as mãos. Se é visita, convêm estar apresentável. Só espero que não seja um desses vendedores de banha da cobra, que procura impingir um electrodoméstico ou um colchão terapêutico. O melhor é abrir e não fazer esperar, pode ser urgente, se calhar é para assinar algum papel!”
Na frente da casa, há sempre uns objectos decorativos, que transformam a embelezam a entrada, mas que são pouco utilizados. No passado, havia mesmo quem reservasse o quarto da frente para uma ocasião especial, como o nascer ou o morrer. O quarto de estado assim se chamava. Nele dormiam os doentes ou os peregrinos, as visitas ou os familiares emigrados que sempre procuram a família quando a saudade aperta. Afinal quem bateu à porta era o senhor prior da freguesia. “Mas porque é que não entrou pelas traseiras? O senhor sabe que, consigo, não fazemos cerimónia!”. “Tinha receio que estivessem em trabalhos”, apressou-se a dizer o prior. “E estávamos, mas nos dias que correm, se queremos ter hortaliças, temos de cultivar a terra, arrancar as ervas e manter as pragas longe da fruta.”
A casa onde se mora é a marca de pertença, que enraíza no espaço os laços que se constroem e transformam a vida, turbulenta e difícil, num lugar de afectos.
Entrar pelas traseiras é como ser da família, é sentir-se em casa e abordar o espaço do outro pela porta da serventia, sem cerimónias nem protocolos, sem preconceitos nem receios, sem faz-de-conta ou disfarces, porque é nas traseiras que a vida, a autêntica, acontece.
(publicado no Açoriano Oriental a 19 de Maio 2008)