Andar e olhar o telemóvel
Quem nunca se cruzou na rua com alguém que caminha, olhos postos num telemóvel? Até pode levar uma pasta, mala, ou estar acompanhado, mas não larga o telemóvel, como se fosse uma extensão do corpo, ferramenta indispensável e integrada nos seus sentidos.
Andam, literalmente, de olhos postos no chão, estes cidadãos online, enquanto fazem deslizar um dedo no écran. É expectável que aconteçam acidentes, um poste de luz que não se evitou ou um tropeção num caixote do lixo, para não falar dos empurrões que, sem quererem, acabam por dar nos outros transeuntes. Talvez, alguns destes "ciberpeões" estejam a desenvolver um sistema visual duplo, que lhes permite ter um olho no écran e o outro na rua! Uma visão radar, muito para além do olhar "pelo canto do olho" que, tradicionalmente, permite estar atento à vida dos outros.
O uso do telemóvel, quando se circula na via pública, já custou a vida a algumas pessoas. Aconteceu na Alemanha, uma jovem morreu a atravessar uma linha de comboio, enquanto olhava o telemóvel. Este, e outros acidentes do género, levaram os responsáveis de uma cidade alemã a colocar semáforos no chão, luzes que se acendem junto às passadeiras e chamam a atenção aos peões, que não levantam os olhos dos telemóveis.
O telemóvel veio para ficar.
Trouxe rapidez na comunicação, dissociou o ato de falar ao telefone do espaço privado. Para alguém que nasceu no século XXI, uma cabine telefónica é um objeto arqueológico.
Podemos falar em qualquer lugar, para qualquer parte do mundo e as distâncias ficaram mais curtas, com as chamadas de vídeo. Mas, há que reaprender o sentido da privacidade. Por vezes, mesmo não querendo, ouvimos as conversas alheias e ficamos a par dos problemas dos outros, só porque esperamos o autocarro na mesma paragem ou estávamos sentados na mesma esplanada de café. A facilidade com que se resolve a vida ao telemóvel trouxe conversas privadas para a praça pública.
O telemóvel de hoje, vai muito para além do equipamento que permite chamadas de voz. Dá acesso à informação, notícias; entretém nos momentos de espera e ajuda a passar o tempo; alarga a rede de contactos; permite registar o peso ou a pulsação, e conta o número de passos diários, entre muitas outras funcionalidades.
E como ficam as relações humanas? Os encontros face a face?
Aos poucos, vão sendo substituídos por SMS e mensagens de voz gravadas.
Fica mais fácil, romper o namoro, dizer não a uma proposta ou até dar uma notícia desagradável, sem enfrentar o olhar do outro, nem perceber o seu desagrado ou sofrimento.
Esta alteração na qualidade das relações faz aumentar o risco de individualismo, apesar da ilusão de estar ligado ao mundo, sentado no sofá, fazendo carícias no visor de um equipamento. Até os bebés o fazem, quando os pais, sem paciência, preferem calar uma birra, passando o telemóvel para as mãos da criança.
Num tempo, em que tanto se fala de preservação da natureza, é bom que, nas nossas relações humanas, não se perca o hábito de dizer palavras de afeto, sorrir ou chorar, sem ser por "emojis".
Os sentidos, do ver ao provar, do cheirar, ao ouvir ou tocar, humanizam. E, não há telemóvel, por mais sofisticado, que os possa substituir.
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 17 setembro 2019)