Consumir antes de pensar
O consumo pode substituir a razão e o bom senso.
E, as práticas comerciais que promovem esse consumo irresponsável são epidémicas, contagiando as sociedades capitalistas, os comerciantes sequiosos de lucros rápidos e os consumidores sequiosos de "oportunidades".
A "black friday" é mais um exemplo disso, incentivando o consumo de produtos, supostamente, com descontos excecionais.
Nascida nos Estados Unidos, o dia que se segue ao feriado da Ação de Graças, que reúne as famílias americanas, transformou-se num movimento de multidões, alienadas pela possibilidade de comprar barato, o que necessitam e, sobretudo, o que não lhes faz falta, mas que transformam em oportunidades.
Há quem compre o vestido de noiva, sem ter casamento marcado ou quem leve dois televisores pelo preço de um.
Neste dia do "São Consumo", há manifestações de irracionalidade em multidões de consumidores, empurrando-se junto às portas de centros comerciais, indiferentes ao outro, capazes de espezinhar alguém que tropece para poder alcançar, em primeiro lugar, um artigo em promoção.
Quem esfrega as mãos de contente são os comerciantes, que aproveitam para escoar produtos em armazém, perante consumidores alucinados pela ânsia de comprar, que apenas olham à percentagem de desconto.
Mas porquê chamar "negra" a esta sexta-feira do consumo!?
Segundo consta, esta designação vem da linguagem comercial que associa o prejuízo ao vermelho e o preto ao sucesso de vendas.
A seguir ao black friday segue-se o cyber monday, segunda-feira cibernauta, onde o consumo, com desconto, está à distância de um clique.
Uma obra recente de Nuccio Ordine, "a Utilidade do inútil", refere um texto de Séneca, que viveu quatro séculos A. Cristo, onde se lê que o nosso maior erro é julgar os homens, não por aquilo que são, mas por aquilo que tem vestido. Por isso, refere o filósofo, se alguém quer ser corretamente avaliado, afaste-se do seu património, das suas honras ou dos favores que lhe traz o dinheiro. Despoje-se até do seu corpo e olhe para a sua alma, o que ela é e qual o seu tamanho. Avalie então qual a sua grandeza!
A essência da dignidade humana está no livre arbítrio. Por isso, quando o ser humano perde essa capacidade, esquece o essencial, o espírito, que o torna numa criatura bela e livre.
É a gestão dessa liberdade que nos permite ser criaturas independentes ou escravos do consumo ou das aparências.
O pior de todo este processo é que associamos a felicidade e até o amor ao consumo ou ao poder que nos conferem os bens consumidos. Na realidade, quando nos despimos de tudo isso e nos despojamos do que o dinheiro comprou, o que fica? Que sentimentos nos reconfortam?
O consumo, sendo uma necessidade, exige consumidores conscientes, atentos ao que realmente importa. Ver na etiqueta, a origem, a composição ou o impacto ambiental do que consumimos, pode contribuir para essa tomada de consciência. Porque há produtos fabricados por empresas/países que não respeitam os direitos humanos, empregam crianças e destroem o meio ambiente.
Somos livres de escolher ou rejeitar esses produtos. Urge pensar antes de consumir.
(publicado no jornal Açoriano Oriental de 26 novembro 2018)