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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Memória

A memória não é um segredo guardado apenas na mente de quem viveu experiências, construiu edifícios, protagonizou momentos históricos ou conheceu pessoas relevantes. Essa memória dificilmente sobrevive se não forem preservados lugares, casas, objetos, registos escritos ou orais, que transformem essas vivências em realidades partilhadas.

De que serve a minha memória individual, se ninguém for capaz de entender o sentido do que transmito? Mesmo que o tempo seja outro, que alguém fale, por exemplo da guerra do ultramar ou mesmo da revolução de abril de 74, os outros entendem ou aprendem a conhecer, se esses acontecimentos fizerem parte de uma história comum. E, se as memórias forem mais privadas e fizerem referencia à história da família, também nesses momentos, em que alguém conta ou se conta, há um reforço dos laços, sobretudo entre gerações.

A memória é, sem dúvida, um cimento que estrutura as relações que constroem as sociedades, as famílias, os grupos ou organizações.

Sem memória, tudo parece feito ontem, renovado não se sabe porquê, e os que nos antecederam apagam-se, esfumam-se como se não tivessem importância.

Por isso, é muito importante cultivar a memória, não para ser saudosista, mas para conhecer a sua própria identidade.

No caso das famílias, um dos lugares de memória são os álbuns, cada vez menos presentes, já que as fotos ficam esquecidas nos cartões de "memória" das máquinas fotográficas. Mas, até esses álbuns só ganham vida quando alguém, protagonista desse tempo, conta as histórias que envolvem as pessoas ou os acontecimentos retratados.

Precisamos, por isso, que alguém nos conte a história, nos faça mergulhar num outro tempo e nos leve a descobrir o percurso vivido, que entretanto passou.

Recentemente, estando em Brest, uma cidade da Bretanha francesa, arrasada na segunda guerra mundial e reconstruída nos anos cinquenta, descobri que um dos lugares com interesse cultural é a rua Saint Malot, que sobreviveu à reconstrução e recorda a cidade, antes da guerra.

Apesar da carga histórica que esta rua representa, o poder local preferia expandir a cidade, nesse local, construindo edifícios em altura.

Mas, contrariando essa intensão, um grupo de cidadãos organizou-se em associação, alguns até vivem nas poucas casas que aí restam, e transformaram o local num museu vivo, onde a história da cidade de Brest se conta de forma diferente. Ali, restam os muros de uma antiga prisão de mulheres, as casas de pedra e alguns pequenos jardins. À volta, a cidade fala de construção naval, marinha de guerra, edifícios de linhas direitas e não existem praças circulares ou lugares comunitários. Tudo parece ter sido redesenhado a régua e esquadro.

A memória faz-se por camadas. Quando destruímos as mais antigas, outras irão ocupar o seu lugar, nem sempre pelas melhores razões. Quando se nega ou se tenta esquecer um determinado passado, quando se apagam os vestígios do que se foi, a memória acaba por enterrar essa camada e, aparentemente, a história parece só ter começado mais tarde.

Isto acontece com as cidades como com as pessoas ou famílias.

Há quem enterre o passado, por não ser capaz de o enfrentar. Mas, quando menos espera, ele surge à superfície, como magma que fura o vulcão, e dá sentido a um objeto ou escrito, torna-se presente numa palavra ou recordação, que escapou a esse controlo que tenta silenciar o passado. Tal como a rua de Brest, reduto de uma outra cidade, antes da reconstrução.

Um bom exercício para recuperar a memória e reforçar a coesão de grupo, seja uma cidade ou uma família, é mergulhar nos álbuns de fotografias, ou descarregar os cartões de memória, e contar às gerações mais jovens, as histórias aí gravadas.

 (texto publicado no Jornal Açoriano Oriental - de 6 fevereiro 2018)

 

Memórias

A vida é um cais onde, todos os dias, chegam e partem pessoas.

Enquanto vivemos preocupados com os estudos, o emprego, as relações de poder ou os ganhos, nem sempre nos damos conta dessas movimentações e mal nos apercebemos das emoções que atravessam o cais da vida.

Não sabemos o dia nem a hora, mas quando nos cabe a vez, de olhar a partida de alguém que nos é próximo e querido, pisamos o cais de olhos alagados, acenando com um lenço branco, uma viagem sem regresso.

De coração pesado, procuramos no cais o baú das memórias.

Memórias de momentos, vivências, gargalhadas e tantos risos.

Tempos onde éramos mais crianças.

Na beira do cais, assistindo a mais uma partida sem retorno, sentimos quebrar um laço, dessa cadeia onde nos incluíram quando nascemos. Uma cadeia que refazemos sempre que outros chegam ao cais, para se ligarem às nossas vidas.

De olhos postos no baú das memórias, recordamos o tempo em que olhávamos os mais velhos da família, como os "grandes", os crescidos, com quem aprendemos a ser, a ter um nome, uma identidade, ouvindo as suas histórias que também eram a nossa própria história.

No cais da vida, reveem-se as memórias de vidas, sonoridades, imagens que nos transportam para outros lugares e outros tempos.

Embrenhados nesse regresso ao passado, a boca enche-se de sabores antigos, de temperos, e as narinas parecem inspirar cheiros e aromas.

O tempo fica congelado e tudo se torna diferente na memória de um segundo, onde não há partidas, nem chegadas, mas apenas vivências.

Memórias. Quando nos despedimos de alguém que parte, para não mais regressar, fica no cais da vida um baú de memórias, um livro de uma vida, uma roupagem diária. Afinal, tudo o que importa para os que ficam no cais está ali.

Missão cumprida, viagem agendada por quem não pergunta se temos ou não disponibilidade para a fazer. É hoje, agora.

E quando menos se espera, abandona-se o baú das memórias, o livro escrito durante anos, que outros julgavam ter mais páginas para escrever; acabam-se as rotinas de simpatia e atenção ao outro: bom dia Sr. João!

No cais, na hora da despedida, são muitos os que folheiam o livro e encontram os traços mais fortes dessa história. Momentos de dor, mas também de força, palavras sensatas e alguns desesperos. Laços feitos e desfeitos, palavras ditas ou silenciadas que lemos, em memória, para fazer a memória de alguém.

Afinal, o que é a vida se não encher um baú de memórias, que se partilham com outros, para depois deixar no cais. O que é a vida se não encher um livro de vivências, umas de dor outras de alegria, umas ponderadas e calmas outras intensas e emotivas, e abandonar tudo isto na hora da despedida.

No cais da partida, não é preciso bagagem, nada é preciso, nem mesmo o baú das memórias ou o livro escrito numa vida.

Aos que ficam no cais sim, essa é uma herança preciosa, para que possam retomar a cadeia de laços, e continuar a construir família.

Para os que ficam essas são as memórias, que não se perdem e que, mesmo perdendo a cor, que o tempo sempre retira às imagens, continuam sendo parte do laço que um dia nos recebeu à chegada, quando alegres nos acolheram.

No cais da vida, há sempre alguém que parte, deixando atrás um baú de memórias e um livro escrito, uma vida.

 (texto publicado no Açoriano Oriental, 10 Março 2015)

Nome de rua

A história de um povo também pode ser contada através dos nomes das ruas das suas cidades, aldeias e vilas.

Os endereços, que escrevemos em documentos, formulários, remetentes e destinatários de correspondência, retractam características de um território, sinalizam acontecimentos marcantes e, em muitos casos, são nomes de pessoas, cujas histórias de vida a grande maioria dos cidadãos desconhece.

A toponímia representou, durante séculos, uma forma de registar o conhecimento empírico sobre as características dos lugares, como revelam designações do tipo: “a Pedreira”, “o Barreiro”, “as Areias”. Muitos outros topónimos nasceram da vida económica e das profissões dos moradores ou da localização estratégica dos arruamentos: a rua da igreja, do cemitério ou da escola, designam um local e um ponto de referência, o que facilita o sentido de orientação para quem não é da terra.

Hoje os nomes das ruas são cada vez menos o reflexo deste conhecimento do espaço ou mesmo da vida social, cultural e económica que nele ocorre. A atribuição de um topónimo é, sobretudo, entendida como uma forma de homenagear post mortem, aqueles que se destacaram em vida.

Homens de negócios, escritores, reis, padres e políticos dão nome a muitas ruas, avenidas e canadas; algumas, rebaptizadas com topónimos que reflectem a sucessão de regimes políticos ou de sensibilidades. Veja-se o exemplo da ponte de Salazar, hoje ponte 25 de Abril.

Noutros locais, a designação popular é substituída por um topónimo de homenagem, como acontece com a Rua da Louça que foi rebaptizada Rua Manuel da Ponte ou a Rua do Valverde que, na realidade, se denomina, Rua Manuel Inácio de Melo.

Entre os muitos nomes de ruas, que evocam pessoas ilustres, poucas mulheres. A história, infelizmente, ainda se escreve pouco no feminino. Não se reconhece qualquer mérito extraordinário a quem levou a vida inteira cuidando dos seus ou educando os filhos dos outros; profissões desde há muito desempenhadas por mulheres na área da saúde, do ensino ou do serviço social, não são reconhecidas publicamente como de relevante mérito. Ao invés, a produção económica ou literária, os cargos políticos ou o desempenho do sacerdócio são domínios de actividade, sobretudo masculina, que com muita frequência constituem topónimos.

Nome de rua! Uma placa, um endereço ou uma homenagem que os vivos prestam a quem fez história.

Nos arruamentos do Parque Industrial foram atribuídos, recentemente, vários topónimos, homenageando um conjunto de empresários e homens empreendedores da “revolução industrial” açoriana da primeira metade do séc. XX, como referiu o Dr. Augusto d’Athayde.

Entre eles consta o nome do meu avô, Rolando Sousa Lima, um homem que viveu na empresa fundada por seu pai a sua própria vida pessoal. Entre a casa e o escritório, uma passagem, uma porta; entre a família e os negócios, o mesmo nome e uma dedicação exclusiva.

Por sua vontade, não quis ser enterrado em jazigo e o seu nome não consta nas placas do cemitério, mas a partir de agora é “nome de rua”.

(publicado no Açoriano Oriental)

 

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