Morte disfarçada
A noite que passou foi tomada de assalto por bruxas, esqueletos ambulantes e outros fantasmas. Ninguém sabe bem como nem quando, mas a tradição de festejar a véspera do dia de Todos os Santos foi muito rapidamente alterada.
Esqueceu-se o peditório do Pão-por-Deus, onde se recolhiam as "escaldadas", um pão especialmente feito para esse dia, dado em memória dos familiares falecidos.
Dar esmolas pelas almas foi e continua a ser uma prática, mesmo quando em vez de pão se dão guloseimas.
De uma forma ou de outra, no Pão-por-Deus ou no Halloween, invoca-se a morte, os que morreram e as almas ou o espírito dos antepassados, dimensões cada vez mais afastadas do quotidiano das sociedades modernas.
Se outrora a morte fazia parte da vivência em comunidade, hoje ela é isolada e exorcizada em figuras de bruxas ou vampiros, que povoam filmes de terror e histórias infantis. Os símbolos de morte, como são as caveiras, surgem inscritos em tatuagens e na indumentária dita juvenil.
Mas se falarmos da morte de alguém, da perda real de uma pessoa que nos é próxima, essa deixou de fazer sentido, incomoda e é quase um tabu. Já o mesmo não acontece nesse universo de figuras tétricas que ilustram histórias de ficção, banda desenhada ou simplesmente inspira os disfarces que as crianças, divertidas, vestem na véspera do dia 1 de Novembro.
As famílias terão por ventura alguma dificuldade em explicar para onde é que foi o avô ou a avó que morreu, mas não tem qualquer problema em comprar uma fato de esqueleto, para que o seu filho participe no cortejo do Halloween.
A morte precisa de ser humanizada e não disfarçada.
Ela faz parte da vida, é mesmo a dimensão que lhe dá sentido.
Se alguém se julga eterno, não se sente humano. Porque, a humanidade faz-se de renovação, de permanentes passagens de pessoas que constroem e contribuem para a sociedade, deixando testemunhos que nos permitem dar continuidade e fazer história.
O facto de sabermos que a nossa vida tem um limite deveria fazer com que valorizássemos cada dia, cada minuto de uma forma diferente. Afinal, não se repetem e sempre que os desperdiçamos, perdemos um tempo de vida único, irrepetível.
Mas será que a dificuldade em encarar a morte com sentido, não se deve à relutância que a sociedade moderna tem em lidar com as perdas?
Apenas se equaciona o sucesso, as vitórias, o que deu certo e escondem-se as derrotas e os insucessos. Não lidamos bem com as desilusões, que resultam das nossas falhas ou são consequência do comportamentos de outros, em quem confiamos e que nos decepcionaram.
Não podemos evitar sentir na pele a perda de confiança, entusiasmo ou motivação. Mas sempre que isso acontece, são outras tantas oportunidades para recomeçar, rever a existência e melhorar o caminho trilhado. Não há sucessos sem derrotas. E isso significa que também na vida, a morte enquanto perda, tem de ser incorporada como motor de renascimento e renovação.
Quem se afunda perante as perdas, não vive, fica moribundo.
A morte dá sentido porque nos obriga a não desperdiçar tempo, sobretudo quando nos sentimos derrotados, ofendidos ou magoados. Saber encontrar sentido nas perdas é saber viver.
Por isso, a morte não deve ser disfarçada mas encarada de frente.
Não deveria ser isolada, mas partilhada.
Quando uma comunidade recorda os seus que já partiram, torna-se mais forte, mais autêntica, porque reconhece que não tem de fazer tudo de novo, mas crescer com base nos alicerces, sabendo valorizar o trabalho anterior.
(Artigo publicado no Açoriano Oriental, 1 Novembro 2016)