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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Morte disfarçada

A noite que passou foi tomada de assalto por bruxas, esqueletos ambulantes e outros fantasmas. Ninguém sabe bem como nem quando, mas a tradição de festejar a véspera do dia de Todos os Santos foi muito rapidamente alterada.

Esqueceu-se o peditório do Pão-por-Deus, onde se recolhiam as "escaldadas", um pão especialmente feito para esse dia, dado em memória dos familiares falecidos.

Dar esmolas pelas almas foi e continua a ser uma prática, mesmo quando em vez de pão se dão guloseimas.

De uma forma ou de outra, no Pão-por-Deus ou no Halloween, invoca-se a morte, os que morreram e as almas ou o espírito dos antepassados, dimensões cada vez mais afastadas do quotidiano das sociedades modernas.

Se outrora a morte fazia parte da vivência em comunidade, hoje ela é isolada e exorcizada em figuras de bruxas ou vampiros, que povoam filmes de terror e histórias infantis. Os símbolos de morte, como são as caveiras, surgem inscritos em tatuagens e na indumentária dita juvenil.

Mas se falarmos da morte de alguém, da perda real de uma pessoa que nos é próxima, essa deixou de fazer sentido, incomoda e é quase um tabu. Já o mesmo não acontece nesse universo de figuras tétricas que ilustram histórias de ficção, banda desenhada ou simplesmente inspira os disfarces que as crianças, divertidas, vestem na véspera do dia 1 de Novembro.

As famílias terão por ventura alguma dificuldade em explicar para onde é que foi o avô ou a avó que morreu, mas não tem qualquer problema em comprar uma fato de esqueleto, para que o seu filho participe no cortejo do Halloween.

A morte precisa de ser humanizada e não disfarçada.

Ela faz parte da vida, é mesmo a dimensão que lhe dá sentido.

Se alguém se julga eterno, não se sente humano. Porque, a humanidade faz-se de renovação, de permanentes passagens de pessoas que constroem e contribuem para a sociedade, deixando testemunhos que nos permitem dar continuidade e fazer história.

O facto de sabermos que a nossa vida tem um limite deveria fazer com que valorizássemos cada dia, cada minuto de uma forma diferente. Afinal, não se repetem e sempre que os desperdiçamos, perdemos um tempo de vida único, irrepetível.

Mas será que a dificuldade em encarar a morte com sentido, não se deve à relutância que a sociedade moderna tem em lidar com as perdas?

Apenas se equaciona o sucesso, as vitórias, o que deu certo e escondem-se as derrotas e os insucessos. Não lidamos bem com as desilusões, que resultam das nossas falhas ou são consequência do comportamentos de outros, em quem confiamos e que nos decepcionaram.

Não podemos evitar sentir na pele a perda de confiança, entusiasmo ou motivação. Mas sempre que isso acontece, são outras tantas oportunidades para recomeçar, rever a existência e melhorar o caminho trilhado. Não há sucessos sem derrotas. E isso significa que também na vida, a morte enquanto perda, tem de ser incorporada como motor de renascimento e renovação.

Quem se afunda perante as perdas, não vive, fica moribundo.

A morte dá sentido porque nos obriga a não desperdiçar tempo, sobretudo quando nos sentimos derrotados, ofendidos ou magoados. Saber encontrar sentido nas perdas é saber viver.

Por isso, a morte não deve ser disfarçada mas encarada de frente.

Não deveria ser isolada, mas partilhada.

Quando uma comunidade recorda os seus que já partiram, torna-se mais forte, mais autêntica, porque reconhece que não tem de fazer tudo de novo, mas crescer com base nos alicerces, sabendo valorizar o trabalho anterior.

(Artigo publicado no Açoriano Oriental, 1 Novembro 2016)

Viver é mortal

Esta afirmação resume bem a condição humana. Somos seres mortais, finitos, limitados no tempo e na capacidade de realização.

E, por estranho que isso possa parecer, nem todos reconhecem que viver é como ter uma doença mortal e que a vida é uma oportunidade, limitada e condicionada, para sermos pessoas.

Estamos condenados a assumir esta condição finita se queremos ser felizes e podermos dar valor ao dia que passa, ao momento presente.

Quando olhamos para trás, para os muitos ou poucos anos que já vivemos, certamente que encontramos desperdícios, oportunidades perdidas, encontros falhados, tarefas deixadas a meio e pessoas de quem nos fomos esquecendo e afastando. No balanço da vida, esta é a coluna do deve que contrabalançamos com a do haver, onde contabilizamos os sucessos, os amigos que fizemos e que mantemos, as realizações, os momentos felizes e tudo o que entendemos serem boas memórias. Qual o saldo final? Pesarão mais os momentos válidos ou os desperdiçados? Contarão mais os encontros ou as ausências?

Viver feliz não é incompatível com a morte, porque a vida é uma doença mortal.

Pode parecer dura esta afirmação, mas se pararmos para reflectir e assumirmos esta condição humana, acabamos por valorizar, de forma diferente, o hoje, o momento, o dia que passa e as tarefas que nos dispomos a realizar.

Que interessa, pensarão alguns, o que faço pouco ou nada faz mudar o mundo? Engana-se quem assim pensa.

A única forma de dar sentido à morte é viver intensamente a vida! Um minuto conta, todo o esforço é importante e um simples sorriso pode contribuir para mudar o ambiente à nossa volta. Viver é como semear, costas voltadas ao terreno, deixando cair palavras e gestos, como se fossem grãos que o vento leva no rodopio das vidas dos outros. Uns até podem ficar esquecidos entre as rochas, mas outros poderão dar lugar a florestas ou transformar-se em oásis de frescura e esperança.

A vida é uma doença mortal sem cura, porque viver é dar-se, consumir energia, partilhar capacidades e competências, transformar problemas em respostas, vencer desafios e ultrapassar derrotas, num tempo limitado.

No rasto da vida de cada ser humano, ficam traços que se misturam com a vida de outros. Quando uns acabam outros começam o seu trajecto, quando uns se esgotam, outros atingem o máximo das suas capacidades.

E é neste passar de testemunho, entre uma vida e outra, que construímos o mundo, onde todos somos importantes e ninguém é dispensável.

A morte não só faz parte da condição humana como lhe confere sentido. Por isso, dizer que a condição mortal é inerente ao viver, é assumir a importância do hoje, do contributo ou da simples presença de cada um nesta malha de relações que tecemos diariamente.

Quem não assume esta condição mortal, tem tendência para se agarrar aos bens materiais e aos poderes efémeros, como se fossem cabos que prendem ao cais; ou então esconde-se por detrás de uma imagem construída, julgando que assim ilude a morte e trava o fluir do tempo.

A vida é como uma vela acesa; ilumina na medida em que é consumida.

 (publicado no Açoriano Oriental de 1 Novembro 2010)

Num mês sombrio, o sol também brilha

 

Há meses de sol, meses de chuva, meses de frio e outros que apenas são sombrios. Pode o sol brilhar e o povo dizer que o verão regressa por altura do São Martinho, mas nada parece alterar o espírito que marca o mês de Novembro, desde sempre associado ao culto das almas.

As culturas tradicionais utilizam imagens simbólicas para estabelecer a relação espiritual que liga os que partem e os que ficam: o fumo, as cordas, as pontes, o arco-íris, os cruzamentos onde ainda hoje se vêem os azulejos das “alminhas”, são tudo imagens e símbolos utilizados em rituais de culto aos mortos.

No mês das almas, o povo relembra a morte como parte da vida e os mortos como protectores da comunidade dos vivos. Come-se o milho dos mortos, visitam-se os cemitérios e limpam-se as campas; em outros povos, até se fazem refeições nesse local. Relembrar a condição humana, limitada, frágil, efémera, é importante, para melhor se viver.

Afinal, o que faço aqui? Qual é a razão de ser para os dias que me são dados como crédito.

Dizia-me alguém, todos recebemos um depósito diário de 86400 segundos, que podemos utilizar bem ou mal. Mas, se os desperdiçarmos perderemos esse saldo; ficaremos impedidos de gastar o resto do tempo, que não soubemos utilizar em cada dia.

Se queremos enfrentar melhor a morte, que a tantos assusta, fantasma que leva os que mais amamos, temos de encontrar objectivos para investir esse depósito diário de vida, única garantia que permite enfrentar o mês sombrio de Novembro.

Afinal, apesar das nuvens, dentro de cada um de nós há um sol, uma razão para viver. Apesar da morte, que marca as histórias de vida com perdas, que relembra sofrimentos; todos os dias nascem pessoas; à nossa volta há quem sorria quando lhe dizemos bom-dia; há quem espere pela firmeza da nossa persistência para não desistir de viver e de lutar.

Quem não encontra nesse depósito de vida, nesses milhares de segundos uma razão de ser para investir, um tempo para ser, acaba corroído pela solidão, pela preguiça ou pela alienação, e fica entregue a si, contabilizando os segundos que se escapam entre os dedos, entregue ao conselho dessas vozes que dizem: “não vás; não saias de casa; deixa-os fazer; porque te preocupas? Afinal tens 86400 segundos só teus, para que os vais gastar com os outros? deixa-te ficar aí, quieto”. I

lusão de quem julga que a conta da vida aumenta quando a não gastamos.

É nessas horas, quando se desiste de viver, que o medo da morte toma conta e agarra esses avarentos sós, que se lamentam sem nada fazer, que choram o passado, de olhos fechados diante do presente.

Afinal o mês de Novembro, apesar de sombrio, pode ser um mês para festejar a vida, se o culto das almas nos fizer lembrar que quem já partiu cumpriu a sua existência. A cada um resta um tempo, mais ou menos longo para investir. E, se esse tempo for bem empregue, um dia, uma hora ou até um minuto podem fazer a diferença, na minha e na vida de outros.

Afinal, no mês de Novembro, o sol também nasce todos os dias.

(publicado no Açoriano Oriental de 3 de Novembro 2008)

No mês das almas

A cultura popular, marcada por uma religiosidade que escapa aos rituais das igrejas, escolheu o mês de Novembro para o culto às almas.

Outrora, dizem os mais antigos, cantavam-se às almas noite dentro, pelas ruas silenciosas, junto às “alminhas” e aos cemitérios. Comia-se milho cozido e faziam-se oferendas, pelos mortos da família, como o “pão por Deus”, tradição cada vez mais esquecida nos últimos anos. Hoje, as bruxas, os esqueletos, as máscaras e a tradição anglo-saxónica do halloween vieram abafar a velha prática das saquinhas de esmolas, de quem pedia “pão” e não prometia vingança se nada recebesse.

A morte evocada nos dias das almas e de todos santos é hoje exorcizada numa fantasia de carnaval que, entre bruxas e esqueletos, diabinhos e feiticeiras, disfarça uma realidade que incomoda. Incomoda e não faz sentido.

Não faz sentido morrer, se a vida significa ter, acumular, ganhar, ser o maior, chegar ao topo e vencer. A morte atrapalha, destrói e torna inúteis todos os ganhos de poder. Afinal, nada do que se conquista de material em vida permanece para além da morte. Apenas o que se deixa aos outros, por ventura em forma de bens materiais, mas sobretudo, em termos de conhecimentos e sabedoria, se constitui como património e recurso que pode crescer com o tempo. Apenas o testemunho que se deixa aos outros sobrevive e dá continuidade ao trabalho dos que, entretanto vão partindo.

Integrar a morte na vida é por isso uma prova de maturidade. Entender que o percurso que fazemos é sempre limitado, é a única forma de investir de forma mais qualificada na vida que passa, aproveitando cada dia como uma dádiva, fazendo deste tempo uma oportunidade para ser feliz e fazer felizes os outros.

O que é irónico é ver como se teme a morte biológica e, ao mesmo tempo, se mata e se morre diariamente. Porque é de morte que se trata, quando se maltrata ou agride alguém, por palavras ou por gestos, se faz da corrupção ou da criminalidade uma forma de ganhar poder ou se perde o interesse pela vida, às vezes por razões tão pequeninas.

A vida é um tempo limitado, condicionado na quantidade de anos, mas que permite ao ser humano construir de acordo com os sentidos que escolher.

A vida é uma tela onde cada um, isoladamente e em comunidade, pode pintar livremente a sua história. Condicionado, é certo, pelas cores das tintas, pelo contexto onde vive, a história que vai construindo ou pelas oportunidades, que marcam a circunstância de cada um. No entanto, quando alguém se recusa a fazer ou impede outros de fazerem a sua obra-prima, limitando a criatividade e a liberdade de ser ou dificultando o acesso aos recursos necessários, mata a vida e retira a expressão única e insubstituível, que faz de cada um, uma tela única, grande ou pequenina, muito ou pouco pintada.

Os antigos fizeram do mês de Novembro um mês sombrio, porque outrora os mortos, apesar de integrados na cultura popular, metiam medo, provocavam um sentimento de respeito e temor. Hoje, exorciza-se a morte nos filmes, nos livros de terror e nas festas do halloween, mas nem por isso, se aceita de forma mais tranquila este devir do ser humano.

(publicado no Açoriano Oriental a 5 de Novembro de 2007)

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