Irmãos romeiros
No adro, junto à porta da igreja, os bordões deitados no chão formavam duas alas. Não é difícil identificar a quem pertencem. Cada um é diferente do outro, ora por ser mais antigo ou por ser feito de um ramo de árvore, simplesmente polido. Quase todos estão encimados com uma cruz e devidamente preparados com uma ponta de metal, para ajudar na caminhada.
Bordões à porta, sinal de que os irmãos romeiros tinham entrado na igreja. Era o último dia da peregrinação, e isso via-se no rosto cansado, nas barbas crescidas, de nove dias de caminhada, à chuva e ao sol, por veredas e estradas, rezando ou cantando a Avé Maria.
Ainda guardavam a cevadeira ou o saco às costas e muitos mantinham os terços pendurados ao pescoço, recordando os milhares de contas que desfiaram entre os dedos, rezando pelo bem de outros ou pela família, pelos doentes e por tantos que, ao longo do caminho, foram pedindo orações aos irmãos romeiros, pedidos que o irmão "encomendador das almas" foi registando no seu rosário, ao mesmo tempo que respondia à pergunta "quantos são, irmão?"
Agora de regresso, é hora do reencontro. Uma criança de dois anos não quer sair do pé do pai, a quem retira do pescoço os terços para colocar em si próprio, voltando a colocar e a retirar. O pai diz-lhe para fazer silêncio e aponta a cruz, dizendo "o Jesus".
A celebração começa, os irmãos romeiros juntam as suas vozes e a igreja enche-se de cânticos no masculino, anulando as vozes habituais das mulheres que ali se deslocaram, mães, esposas e familiares. Só se ouvem os homens em coro, emocionados por terem chegado ao fim da peregrinação.
Não é comum ver tantos homens nos primeiros bancos da igreja. Houve mesmo tempos em que ficavam ao fundo, logo à entrada, se não mesmo no adro, enquanto as mulheres, tidas por mais beatas, rezavam e entoavam as orações, com voz estridente.
Talvez por isso, ouvir as vozes masculinas que enchem a igreja emociona e gera um enorme sentimento de respeito e admiração por todos estes irmãos que, dentro ou fora da romaria, continuam a tratar-se de forma fraterna.
Ser irmão romeiro, salvo as devidas evoluções, continua sendo uma experiência de pobreza, no traje e nos recursos, na procura de abrigo em casa de famílias ou em espaços coletivos. Ao longo da estrada, o rancho vai tocando famílias, recolhendo intensões e rezando, cantando, enquanto as contas do terço vão passando pelos dedos. A toada das suas vozes corta o ar, numa musicalidade única, que se perde nos tempos, desde o século XVI.
A tradição das romarias de São Miguel já chegou a outras ilhas e mesmo as mulheres, que a igreja católica afastou desta prática, experienciam ser peregrinas por um dia.
Todos procuram abrir um parêntesis na vida agitada de todos os dias e descobrir como, retiradas as aparências, derrubadas as barreiras e desfeitos os preconceitos e os juízos infundados, podemos ser irmãos. Juntos, somos muito mais fortes, mais capazes de ser solidários e disponíveis para acolher o outro, diferente, sem o julgar.
De regresso à igreja os romeiros dão as mãos, num último cântico. A criança de dois anos também participa; não há filhos nem pais, família ou amigos, são todos irmãos.
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 17 abril 2019)