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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Irmãos romeiros

No adro, junto à porta da igreja, os bordões deitados no chão formavam duas alas. Não é difícil identificar a quem pertencem. Cada um é diferente do outro, ora por ser mais antigo ou por ser feito de um ramo de árvore, simplesmente polido. Quase todos estão encimados com uma cruz e devidamente preparados com uma ponta de metal, para ajudar na caminhada.

Bordões à porta, sinal de que os irmãos romeiros tinham entrado na igreja. Era o último dia da peregrinação, e isso via-se no rosto cansado, nas barbas crescidas, de nove dias de caminhada, à chuva e ao sol, por veredas e estradas, rezando ou cantando a Avé Maria.

Ainda guardavam a cevadeira ou o saco às costas e muitos mantinham os terços pendurados ao pescoço, recordando os milhares de contas que desfiaram entre os dedos, rezando pelo bem de outros ou pela família, pelos doentes e por tantos que, ao longo do caminho, foram pedindo orações aos irmãos romeiros, pedidos que o irmão "encomendador das almas" foi registando no seu rosário, ao mesmo tempo que respondia à pergunta "quantos são, irmão?"

Agora de regresso, é hora do reencontro. Uma criança de dois anos não quer sair do pé do pai, a quem retira do pescoço os terços para colocar em si próprio, voltando a colocar e a retirar. O pai diz-lhe para fazer silêncio e aponta a cruz, dizendo "o Jesus".

A celebração começa, os irmãos romeiros juntam as suas vozes e a igreja enche-se de cânticos no masculino, anulando as vozes habituais das mulheres que ali se deslocaram, mães, esposas e familiares. Só se ouvem os homens em coro, emocionados por terem chegado ao fim da peregrinação.

Não é comum ver tantos homens nos primeiros bancos da igreja. Houve mesmo tempos em que ficavam ao fundo, logo à entrada, se não mesmo no adro, enquanto as mulheres, tidas por mais beatas, rezavam e entoavam as orações, com voz estridente.

Talvez por isso, ouvir as vozes masculinas que enchem a igreja emociona e gera um enorme sentimento de respeito e admiração por todos estes irmãos que, dentro ou fora da romaria, continuam a tratar-se de forma fraterna.

Ser irmão romeiro, salvo as devidas evoluções, continua sendo uma experiência de pobreza, no traje e nos recursos, na procura de abrigo em casa de famílias ou em espaços coletivos. Ao longo da estrada, o rancho vai tocando famílias, recolhendo intensões e rezando, cantando, enquanto as contas do terço vão passando pelos dedos. A toada das suas vozes corta o ar, numa musicalidade única, que se perde nos tempos, desde o século XVI.

A tradição das romarias de São Miguel já chegou a outras ilhas e mesmo as mulheres, que a igreja católica afastou desta prática, experienciam ser peregrinas por um dia.

Todos procuram abrir um parêntesis na vida agitada de todos os dias e descobrir como, retiradas as aparências, derrubadas as barreiras e desfeitos os preconceitos e os juízos infundados, podemos ser irmãos. Juntos, somos muito mais fortes, mais capazes de ser solidários e disponíveis para acolher o outro, diferente, sem o julgar.

De regresso à igreja os romeiros dão as mãos, num último cântico. A criança de dois anos também participa; não há filhos nem pais, família ou amigos, são todos irmãos.

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 17 abril 2019)

 

Podar

Segundo o almanaque agrícola, Fevereiro é o mês das podas, uma atividade necessária para que as plantas e, sobretudo, as árvores possam crescer de forma equilibrada, ganhar forma e dar mais e melhor fruto, quando chegar o verão.

Podar é sem dúvida uma arte que exige conhecimentos, técnica e capacidade de antecipar o impacto que terá sobre o crescimento da planta. Não deixam de ser feridas, os cortes que vão ser feitos, mas são necessários e, uma vez cicatrizados, irão compensar pelo crescimento renovado que daí resultará.

Aliás, na linguagem agrícola, podam-se em geral galhos "ladrões", ou "cavalos", que roubam ou retiram força à planta e não são férteis. São desnecessários e devem ser amputados.

Alguns dirão, porque motivo falo de podas de árvores nesta altura do ano. Não será certamente apenas por estarmos ainda no mês de Fevereiro, mas porque esta atividade agrícola pode ser vista como simbólica do que os cristãos associam à quaresma, ou do sentido que este período, pós carnaval, pode representar para alguns.

Também no quotidiano humano, há necessidade de limpar, reorganizar e reordenar, diria mesmo podar. Há ramos que deixamos crescer que não fazem falta, há muito que os devíamos ter retirado; são os que nos tornam preguiçosos, pouco motivados para arriscar, e nos fazem estar sempre lastimando do que não temos e nos tornam incapazes de valorizar as nossas competências e atributos, respondendo a qualquer desafio com a frase esfarrapada do "não vale a pena; já não tenho idade para isso, é tarde de mais!".

Há momentos na vida que é importante e necessário cortar radicalmente com aquilo que nos torna infelizes, mas que não temos coragem de assumir. Há dentro de cada ser humano um projeto bonito, que pode dar frutos se este souber conduzir a vida sem desperdícios.

Quando analisamos o percurso de alguém, que diz "não ter tido sorte", "não encontrar saída", alguém que desistiu de lutar e de arriscar mas que, ainda assim, espera que alguém lhe apareça na vida, que surja o emprego ideal, "há-de aparecer, um dia, talvez!", só há uma conclusão a tirar: a infelicidade está dentro dessa pessoa, que passa a vida a culpar o azar ou a falta de oportunidades.

As oportunidades fazemo-las nós, por vezes à custa de podar alguns ramos que nos roubam energia e nos tornam preguiçosos e desmotivados. Para que uma árvore dê boa fruta, não basta plantar e ficar à espera. Os mais experientes ensinam-nos que é preciso, por vezes, enxertar-lhe uma outra espécie que melhore a qualidade, podar na altura certa, quando a árvore é capaz de o suportar, respeitando o seu crescimento e o seu ciclo de maturação.

Sem dúvida que podemos aprender com a natureza a descobrir a humanidade, o sentido mais profundo do que nos torna pessoas, identificadas, com projetos de vida, capazes de nunca desistir. Quantas árvores pareciam mortas e renasceram depois de uma poda bem feita?!

Assim pode acontecer com quem julga que a sua vida acabou. Mudar é necessário, rever caminhos é fundamental, fazer escolhas uma obrigação e, sobretudo, não desistir de si, acreditar e ter vontade de viver é o que nos faz apreciar um nascer do sol e dar um passo em frente. A vida é muito melhor quando somos capazes de dar sentido ao sofrimento, porque decidimos corrigir, rever hábitos e rotinas, que nos roubam a felicidade e a alegria de viver.

(artigo publicado no jornal Açoriano Oriental de 23 Fevereiro 2016)

Da fartura às cinzas

O Carnaval é um tempo “gordo”, de fartura e fritos, de excessos e comportamentos desmedidos.

Um tempo de máscaras onde se podem esconder as verdadeiras identidades, para fazer de conta que se é mulher, sendo homem, que se é palhaço, quando habitualmente até nem se encara as dificuldades com humor.
O Carnaval é tudo isto e muito mais. Um tempo para a comunidade abrir os seus armários de segredos e libertar os seus fantasmas. Uma catarse necessária, que antecede um outro tempo, para os cristãos de introspecção, meditação e penitência, a Quaresma.
Se o Carnaval é um tempo de fartura, de exaltação dos prazeres mundanos, a quarta-feira que lhe segue tem sentido contrário. O Dia das cinzas, ritual que os católicos simbolizam com a imposição de um sinal de cinza, confronta o ser humano com o efémero da vida. Afinal, viver é apropriar-se de um tempo limitado, onde contam menos os bens que se acumulam para si, do que o bem que se faz aos outros.
Entre o Carnaval e a Quaresma, o calendário marca uma transição entre a fartura e a pobreza, entre o brilho das lantejoulas e o cinzento do quotidiano. Para alguns, essa transição nunca é sentida, porque vivem sempre no disfarce da máscara, falseando a vida com exageros, escondendo as dificuldades sob uma aparência de sucesso. Também há quem não consiga aproveitar o espírito de brincadeira que o carnaval proporciona, demasiado afogado em tristezas e dificuldades, incapaz de encarar a vida com optimismo.
O Carnaval e a Quaresma são dois tempos fortes do calendário onde a comunidade revela duas faces distintas, agora mais foliona, depois mais recolhida. No exagero ou na simplicidade, com disfarces ou confrontados com a realidade, Carnaval e Quaresma são tempos de revelação.
Neste tempo de folia, os açorianos aproveitam para se dar a conhecer, dançando, teatralizando a vida em sociedade, batalhando com água ou com confetis. Depois, cansados da festa, regressam a casa, finda a terça-feira gorda, para enfrentar o quotidiano, desta vez sem máscaras, e reencontrar a alegria na partilha dos afectos e nas pequenas vitórias diárias, sempre que se ultrapassam dificuldades.

(publicado no Açoriano Oriental de 15 Fevereiro 2010)

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