Um círio do meu tamanho
De negro vestida, uma mulher caminha de rosto fechado, numa mão o terço e na outra um círio do seu tamanho.
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De negro vestida, uma mulher caminha de rosto fechado, numa mão o terço e na outra um círio do seu tamanho.
Que se vivem as festas do Senhor Santo Cristo.
Emoção de quem há um ano não vê a imagem ou de quem há muitos anos, longe da terra natal, regressa pelas festas, alguns porque fizeram uma promessa que não querem deixar de cumprir.
Diante da imagem de um Cristo humilhado, que carrega nos ombros o desprezo, a violência de uma sociedade que não reconheceu nele o Rei, e o crucificou, como “o Homem” que se atreveu pregar o Amor e a Salvação pelo Perdão.
Diante deste rosto que não envelhece, criado por mãos humanas em busca do sentir divino, muitas lágrimas são derramadas, porque também sobre os ombros de quem olha, com emoção, o Senhor Santo Cristo, quantas vidas pesadas, quantas agressões sofridas e quantos problemas e dificuldades, doenças e limitações sem cura, sem solução à vista.
O ser humano precisa de esperança para acreditar em si, precisa de sentir que é possível, que as suas dificuldades podem ser ultrapassadas, vencidas, se tiver a força que vem do espírito. Talvez por isso, muitos não crentes se sentem tocados pela força desta imagem, e ficam impressionados com o culto ao Senhor Santo Cristo, que arrasta milhares de pessoas, num acto de fé.
Diante deste Cristo, muitos joelhos se vergam; sob o peso dos círios, homens e mulheres caminham pelas ruas da cidade, revelando ao mundo o peso da sua dor e da sua gratidão.
É difícil explicar porque este culto congrega tantos açorianos. Mas o certo é que há mais de três séculos, esta imagem, fabricada como outras por um artista, humaniza sob o olhar dos crentes, interpela e transforma-se, para muitos açorianos, num retrato vivo de alguém em quem acreditam. Não importa como, não importa porquê, o certo é muitos vêem no Senhor Santo Cristo, a expressão da dor vencida, a esperança que não morre, o milagre que é possível.
É a religiosidade de um povo que cresceu, apesar dos vulcões, dos sismos e da pirataria. Um povo que desbravou matas para fazer terras de pão e transformou os arados que não venciam a terra vulcânica, fez novos barcos para enfrentar o Altântico e adaptou a arquitectura das casas aos recursos de pedra das ilhas.
O Senhor Santo Cristo, as Festas do Espírito Santo e tantas outras expressões religiosas que marcam o calendário das comunidades destas ilhas, são o rosto de um povo de migrantes que do continente português veio e logo de início procurou em terras do Brasil, e depois na América do Norte e Canadá, melhor vida e melhor sorte.
Longe ou perto, é o coração que vibra,
Ao som do hino é a alma que se anima, diante desta imagem sofrida.
Longe ou perto, é com emoção que se reza
Palavras aprendidas ou dificuldades sentidas…
Oh Senhor, não te esqueças de mim, diante de ti rendido.
No teu sofrimento, carrega também o meu,
Tu que és esperança, atende ao meu pedido.
Longe ou perto, é o passado que se renova,
Nos pés descalços de mulheres e homens
Que carregam a cruz da vida, nos círios como prova.
Oh Senhor, não te esqueças de mim,
Longe ou perto te imploro,
Cuida das minhas feridas,
Porque as tuas quisera eu limpar,
Com as minhas lágrimas lavar.
(publicado no Açoriano Oriental a 28 de Abril 2008)