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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Ser vítima ou ter medo?

Quando os noticiários falam de vítimas é porque alguém denunciou ou assumiu uma história de agressões e maus-tratos. Enquanto não se fala, não se sabe ou não se vê, a realidade das agressões é inexistente, aparentemente invisível e até ignorada. É um problema que diz respeito à vida dos outros ou de outras, como acontece na maior parte dos casos.

Mas quem são essas outras? Porque não se libertam de vidas difíceis, porque não procuram ajuda?

Todas as questões que possamos fazer, que tenham como alvo as vítimas, acabam por cair no mesmo, a própria tem de explicar porque é maltratada. Deve ter uma justificação para o que lhe acontece!

Enquanto procurarmos nas vítimas a solução do problema, iremos continuar a ignorar a causa deste fenómeno ignóbil que é a violência doméstica e que reside na forma como são vividas as relações, entre homens e mulheres, particularmente no domínio privado que é a casa, o lar.

Se, por um lado, a lei tem vindo progressivamente a reconhecer que o espaço doméstico está longe de ser um santuário de segurança, por outro continua-se a valorizar a figura do pai, marido ou dono, o homem da casa que, supostamente, paga as despesas, manda e tem autoridade.

A democracia nem sempre está presente na vida doméstica, por isso, qualquer cidadão deve denunciar os atentados à integridade, em particular, quando atingem a vida de uma pessoa, seja homem ou mulher, criança, idosa ou portadora de deficiência, que viva aprisionada, maltratada, explorada debaixo de um teto onde, supostamente, estaria em segurança.

A violência doméstica está longe de ser um problema das vítimas. Enraizada em modelos relacionais, conceitos de poder, autoridade ou masculinidade, tem contornos morais, que a transformam em vergonha e em culpa. O silêncio é muitas vezes a única arma de quem vive, diariamente, humilhações, ameaças, insegurança financeira ou receio pelos danos que possam afetar a família.

A vergonha e o medo são travões à liberdade, que minam a consciência de se ser um cidadão de direitos. A vergonha e o medo transformam a vítima num ser silenciado, aparentemente tolerante, que diariamente equaciona as consequências do confronto com a justiça, não apenas a que se pratica nos tribunais, mas a que molda a sociedade que discute o tema na praça pública, mas ignora os dramas de quem vive na casa do lado ou trabalha na secretária em frente.

Como fica a relação com os filhos? Será que a denúncia levará a um evidente afastamento do agressor? Quantas notícias falam de mortes de mulheres que já se tinham divorciado e continuaram a ser perseguidas, amedrontadas com mensagens e ameaças! E como fica a vida diária, o pagamento de uma renda e demais despesas? Afinal, na maioria dos casos é o agressor que fica na casa e às mulheres oferece-se um abrigo, uma identidade falsa, uma vida na clandestinidade!

Ser vítima é assumir, com coragem, aquilo que a sociedade não quer admitir, o facto de persistirem discursos e práticas misóginas, que dificultam o julgamento dos crimes de género, em particular os de natureza sexual. Nesse sentido, e citando Laborinho Lúcio num excerto do livro de Isabel Ventura, "Medusa no Palácio da Justiça" (2018): "Certamente haverá mais crimes sexuais pelo facto de se ir dizendo sucessivamente que não havia forma de puni-los".

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 2 abril 2019)

O (des)acórdão

Muito se escreveu e disse sobre o acórdão do tribunal da Relação do Porto que desagrava um crime de violência doméstica, alegando adultério por parte da mulher vítima.

Políticos, movimentos cívicos, articulistas em diferentes jornais teceram comentários ou simplesmente repudiaram o referido acórdão, alegando o retrocesso civilizacional que o mesmo representa.

A este movimento de repúdio, manifestações de rua e até uma petição com mais de 18 mil subscritores, os responsáveis da Magistratura reagiram tarde, com incómodo e alguma resistência corporativa, afirmando que estas reações não prestavam "um bom serviço nem para a justiça, nem para a defesa das vítimas", como referiu o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Nas suas palavras as sentenças dos juízes exigem, e cito: "sobriedade e vigilância semântica" e "a manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações da linguagem de subjetividade excessiva, não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência."

A violência doméstica é um crime público desde 2000 (Lei 7/2000 de 27 de Maio que alterou o Código penal), mas só em 2007, por força da Lei 59/2007 de 4 de Setembro, foi introduzido o crime de violência doméstica. Ainda mais recente, a Lei 19/2013, de 21 de fevereiro estabelece o Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à Proteção e à assistência das suas vítimas. Foram precisos muitos milhares de agressões e de mortes até que a sociedade portuguesa reconhecesse que, agredir não é um direito que assiste a maridos ofendidos ou esposas traídas, e que as vítimas não são objetos sobre quem se tenham direitos de posse.

O quadro legal que materializa esta defesa é recente, mas nada justifica as posições mais brandas que a Justiça teima em proferir, perante um crime doméstico, familiar, por ventura naturalizado em muitas casas e numa cultura onde ainda se diz: "quanto mais me bates, mais gosto de ti".

No crime de violência doméstica, há um substrato cultural, profundo, uma raiz violenta que mina as relações de género e condiciona o pensamento e as atitudes.

Mas nada justifica o (des)acórdão do Tribunal do Porto e a demissão da Justiça portuguesa perante os crimes de violência doméstica. Basta ler o relatório anual de monitorização da violência doméstica do Ministério da Administração Interna, de 2015, para verificar que, dos 34mil inquéritos de violência doméstica analisados entre 2012 e 2015, 78% resultaram em arquivamento, 4,7% em suspensão do processo e apenas 17,5% deram lugar a uma acusação. Recorde-se, a propósito, que apresentar queixa por maus tratos é, infelizmente, um sinal de exaustão de alguém que carrega uma vida de agressões. A lei protege as vítimas, permite condenar os agressores e não é preciso que haja "nódoas negras" para o fazer.

Certamente, que todos os juízes sabem os códigos penais, quase de cor. Mas, em alguns casos, falta-lhes formação em ciências sociais e humanas.

Os planos de estudos (Ex. Faculdades de Lisboa e Porto) abordam todas as espécies de Direito (Constitucional, Romano, Família, Internacional, Administrativo, Processual, Penal, Fiscal, Civil ...) mas esquecem que, os advogados e os juízes precisam de formação em Psicologia e Sociologia, para não agirem em função dos seus "estados de alma" e "crenças pessoais".

Não basta saber escrever, nem um acórdão é uma mera questão de semântica, como referia o Presidente do Supremo. Estão em causa valores e representações sociais, que não são forçosamente as do cidadão juiz, mas que enformam o sentido das leis que terá de aplicar.

Um juiz não faz a Justiça de um país, mas um (des)acórdão pode fazer a diferença entre o silêncio e o acordar da consciência cívica desse país.

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 31 Outubro 2017)

 

Retrocesso na Rússia

Retrocesso civilizacional é como podemos classificar as recentes decisões do Estado russo em relação ao crime de violência doméstica (VD), que alteram o artigo 116 do Código Penal. A proposta de revisão da lei, pasme-se, foi defendida por duas mulheres, a senadora Elena Mizulina, ultraconservadora do Partido "Rússia justa" e a deputada Olga Betalina, do Partido Rússia Unida (de Vladimir Putin).

Assim, e de acordo com a decisão do parlamento russo, aprovada no passado dia 7 de fevereiro, é necessário que: os ferimentos sejam suficientemente graves que levem à hospitalização; o ato de agressão seja mais frequente do que uma vez por ano ou a agressão implique faltar ao emprego ou à escola, para que o agressor seja julgado judicialmente. Mesmo assim, a vítima terá de provar essa agressão, recolhendo as evidências necessárias para a constituição do processo de acusação.

Entre os vários argumentos apresentados a favor desta nova lei estão, por exemplo, as afirmações de Mizulina, que declarou ser fraca a condição das mulheres russas, habituadas a serem batidas pelos seus maridos ou companheiros, algo que, segundo esta senadora, faz parte da cultura russa. Esta posição mereceu o apoio da igreja ortodoxa russa, cujo responsável para os assuntos familiares declarou que o estado não se deve imiscuir na vida familiar e que, despenalizar a violência doméstica seria uma imposição ocidental sobre a tradição familiar russa, segundo a qual, a violência praticada sobre a mulher, se for "razoável" e feita "com amor", desde que não provoque danos físicos, é aceitável. O próprio presidente da Rússia considerou "intolerável" prender alguém por dar uma bofetada, e considerou a legislação que protege as vítimas, uma ingerência da justiça nos assuntos da família.

Este é um claro retrocesso civilizacional, uma violação descarada dos direitos humanos, consagrados desde 1948, a partir dos quais muitas outras recomendações e declarações tem sido feitas, como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher (1981) ou a Declaração sobre eliminação da violência sobre as mulheres (1993).

Esta é uma decisão jurídica que esconde a realidade de milhares de mulheres russas agredidas todos os anos. De acordo com os últimos dados do governo russo, que deixou de publicar estatísticas em 2008, seriam então 13.000/ano o número de mulheres mortas por atos de VD.

Para além do femicídio, um fenómeno que, infelizmente, também ocorre em Portugal, em 2015, morreram 29 mulheres às mãos dos companheiros ou cônjuges (428 casos entre 2004 e 2015 segundo a APAV), a violência doméstica reflete, necessariamente, uma sociedade desigual.

A coberto de tradições ou religiões, aceitam-se e aprovam-se relações baseadas no desrespeito pela dignidade humana e no poder masculinizado. Naturaliza-se a força física como linguagem de correção e fecha-se os olhos perante a humilhação, o abuso e a violação dos direitos do outro, a cobro de uma pertença sacralidade da família ou proteção da intimidade e do mundo privado que a definem.

As relações familiares não conferem direitos de propriedade sobre cônjuges ou filhos. São compromissos de cooperação, partilha e proteção mútua.

No entanto, a VD prova que a proximidade familiar pode constituir um risco, principalmente para as mulheres, as crianças, os idosos e as pessoas portadoras de deficiência. Mais do que as agressões físicas, "disfarçadas" ou consideradas como simples "bofetadas", está em causa a integridade emocional e psicológica das vítimas. Os agressores sabem como dominar as vítimas, "sem lhes causar dano físico". Denunciar é a única defesa da vítima. Infelizmente, apesar de em Portugal a violência doméstica ser um crime público desde 2000, a grande maioria das participações são arquivadas por falta de provas (78% dos casos de denúncia em 2015, segundo o relatório do Min. Adm. Interna).

(artigo de opinião publicado no jornal Açoriano Oriental de 21 fev.2017)

Retrocesso na Rússia

 

Retrocesso civilizacional é como podemos classificar as recentes decisões do Estado russo em relação ao crime de violência doméstica (VD), que alteram o artigo 116 do Código Penal. A proposta de revisão da lei, pasme-se, foi defendida por duas mulheres, a senadora Elena Mizulina, ultraconservadora do Partido "Rússia justa" e a deputada Olga Betalina, do Partido Rússia Unida (de Vladimir Putin).

Assim, e de acordo com a decisão do parlamento russo, aprovada no passado dia 7 de fevereiro, é necessário que: os ferimentos sejam suficientemente graves que levem à hospitalização; o ato de agressão seja mais frequente do que uma vez por ano ou a agressão implique faltar ao emprego ou à escola, para que o agressor seja julgado judicialmente. Mesmo assim, a vítima terá de provar essa agressão, recolhendo as evidências necessárias para a constituição do processo de acusação.

Entre os vários argumentos apresentados a favor desta nova lei estão, por exemplo, as afirmações de Mizulina, que declarou ser fraca a condição das mulheres russas, habituadas a serem batidas pelos seus maridos ou companheiros, algo que, segundo esta senadora, faz parte da cultura russa. Esta posição mereceu o apoio da igreja ortodoxa russa, cujo responsável para os assuntos familiares declarou que o estado não se deve imiscuir na vida familiar e que, despenalizar a violência doméstica seria uma imposição ocidental sobre a tradição familiar russa, segundo a qual, a violência praticada sobre a mulher, se for "razoável" e feita "com amor", desde que não provoque danos físicos, é aceitável. O próprio presidente da Rússia considerou "intolerável" prender alguém por dar uma bofetada, e considerou a legislação que protege as vítimas, uma ingerência da justiça nos assuntos da família.

Este é um claro retrocesso civilizacional, uma violação descarada dos direitos humanos, consagrados desde 1948, a partir dos quais muitas outras recomendações e declarações tem sido feitas, como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a mulher (1981) ou a Declaração sobre eliminação da violência sobre as mulheres (1993).

Esta é uma decisão jurídica que esconde a realidade de milhares de mulheres russas agredidas todos os anos. De acordo com os últimos dados do governo russo, que deixou de publicar estatísticas em 2008, seriam então 13.000/ano o número de mulheres mortas por atos de VD.

Para além do femicídio, um fenómeno que, infelizmente, também ocorre em Portugal, em 2015, morreram 29 mulheres às mãos dos companheiros ou cônjuges (428 casos entre 2004 e 2015 segundo a APAV), a violência doméstica reflete, necessariamente, uma sociedade desigual.

A coberto de tradições ou religiões, aceitam-se e aprovam-se relações baseadas no desrespeito pela dignidade humana e no poder masculinizado. Naturaliza-se a força física como linguagem de correção e fecha-se os olhos perante a humilhação, o abuso e a violação dos direitos do outro, a cobro de uma pertença sacralidade da família ou proteção da intimidade e do mundo privado que a definem.

As relações familiares não conferem direitos de propriedade sobre cônjuges ou filhos. São compromissos de cooperação, partilha e proteção mútua.

No entanto, a VD prova que a proximidade familiar pode constituir um risco, principalmente para as mulheres, as crianças, os idosos e as pessoas portadoras de deficiência. Mais do que as agressões físicas, "disfarçadas" ou consideradas como simples "bofetadas", está em causa a integridade emocional e psicológica das vítimas. Os agressores sabem como dominar as vítimas, "sem lhes causar dano físico". Denunciar é a única defesa da vítima. Infelizmente, apesar de em Portugal a violência doméstica ser um crime público desde 2000, a grande maioria das participações são arquivadas por falta de provas (78% dos casos de denúncia em 2015, segundo o relatório do Min. Adm. Interna).

(artigo publicado no A.Oriental de 21 fevereiro 2017)

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