Ser vítima ou ter medo?
Quando os noticiários falam de vítimas é porque alguém denunciou ou assumiu uma história de agressões e maus-tratos. Enquanto não se fala, não se sabe ou não se vê, a realidade das agressões é inexistente, aparentemente invisível e até ignorada. É um problema que diz respeito à vida dos outros ou de outras, como acontece na maior parte dos casos.
Mas quem são essas outras? Porque não se libertam de vidas difíceis, porque não procuram ajuda?
Todas as questões que possamos fazer, que tenham como alvo as vítimas, acabam por cair no mesmo, a própria tem de explicar porque é maltratada. Deve ter uma justificação para o que lhe acontece!
Enquanto procurarmos nas vítimas a solução do problema, iremos continuar a ignorar a causa deste fenómeno ignóbil que é a violência doméstica e que reside na forma como são vividas as relações, entre homens e mulheres, particularmente no domínio privado que é a casa, o lar.
Se, por um lado, a lei tem vindo progressivamente a reconhecer que o espaço doméstico está longe de ser um santuário de segurança, por outro continua-se a valorizar a figura do pai, marido ou dono, o homem da casa que, supostamente, paga as despesas, manda e tem autoridade.
A democracia nem sempre está presente na vida doméstica, por isso, qualquer cidadão deve denunciar os atentados à integridade, em particular, quando atingem a vida de uma pessoa, seja homem ou mulher, criança, idosa ou portadora de deficiência, que viva aprisionada, maltratada, explorada debaixo de um teto onde, supostamente, estaria em segurança.
A violência doméstica está longe de ser um problema das vítimas. Enraizada em modelos relacionais, conceitos de poder, autoridade ou masculinidade, tem contornos morais, que a transformam em vergonha e em culpa. O silêncio é muitas vezes a única arma de quem vive, diariamente, humilhações, ameaças, insegurança financeira ou receio pelos danos que possam afetar a família.
A vergonha e o medo são travões à liberdade, que minam a consciência de se ser um cidadão de direitos. A vergonha e o medo transformam a vítima num ser silenciado, aparentemente tolerante, que diariamente equaciona as consequências do confronto com a justiça, não apenas a que se pratica nos tribunais, mas a que molda a sociedade que discute o tema na praça pública, mas ignora os dramas de quem vive na casa do lado ou trabalha na secretária em frente.
Como fica a relação com os filhos? Será que a denúncia levará a um evidente afastamento do agressor? Quantas notícias falam de mortes de mulheres que já se tinham divorciado e continuaram a ser perseguidas, amedrontadas com mensagens e ameaças! E como fica a vida diária, o pagamento de uma renda e demais despesas? Afinal, na maioria dos casos é o agressor que fica na casa e às mulheres oferece-se um abrigo, uma identidade falsa, uma vida na clandestinidade!
Ser vítima é assumir, com coragem, aquilo que a sociedade não quer admitir, o facto de persistirem discursos e práticas misóginas, que dificultam o julgamento dos crimes de género, em particular os de natureza sexual. Nesse sentido, e citando Laborinho Lúcio num excerto do livro de Isabel Ventura, "Medusa no Palácio da Justiça" (2018): "Certamente haverá mais crimes sexuais pelo facto de se ir dizendo sucessivamente que não havia forma de puni-los".
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 2 abril 2019)