Um inimigo do povo
Foi com este título, "Um inimigo do povo" que subiu à cena, no Teatro Micaelense, uma peça da autoria de Henrik Ibsen, com direção artística de Tónan Quito.
A história começa numa estância balnear onde o médico responsável aguarda, com ansiedade, o resultado de umas análises à qualidade da água do empreendimento, cuja abertura estava a trazer um novo fôlego económico à comunidade local.
Perante o resultado desfavorável, entretanto conhecido, coloca-se o dilema e a decisão de encerrar, ou não, a estância balnear.
Esta é uma história, onde se confronta o saber dos técnicos com o poder dos políticos; o conhecimento e a informação, com a ignorância consentida; a força da objetividade e da verdade contra o poder da imagem, do interesse pessoal e da mentira intencional.
Na base deste confronto, uma atitude: o questionamento do técnico, o espírito crítico. De início até colhe apoios, todos consideram importante que se saiba mais. Mas logo, esses mesmos apoiantes mudam de posição quando confrontados com as consequências desse saber, da informação recolhida.
Ainda hoje se ouve dizer: "mais vale a ignorância, prefiro não saber".
E são essas posições de valorização do desconhecimento, que dão espaço aos demagogos e populistas, ao aproveitamento político e económico.
Perante o desinteresse de muitos, uns poucos decidem, como bem entendem, o que fazer da informação a que tem acesso. Se for incómoda, o melhor é não revelar. Se for por em causa decisões políticas erradas, então só há que desvalorizar ou guardar na gaveta, com carimbo "confidencial". Assim, protegem-se as pessoas do conhecimento da verdade e mantêm-se as aparências, pelo menos, enquanto for possível controlar os impactos negativos.
"O inimigo do povo" é uma peça que desinstala os espectadores. Sobretudo, quando a assembleia, que terá de se pronunciar, são os próprios espectadores na sala do Teatro. Voltados para a plateia, os atores interpelam o público sobre qual a posição mais adequada: a do médico, que insiste em revelar a informação e dessa forma defender a saúde pública, ou a do Intendente que, preocupado com o impacto económico que adviria do encerramento da estância termal, prefere esperar, deixar que todos fiquem na ignorância, contrapondo ao discurso do médico: "devia ter falado comigo antes". Porque, um assunto "tão sensível", nunca seria divulgado no estado "bruto", mas ardilosamente diluído numa mentira, capaz de enterrar o que não defende os interesses de quem decide.
Esta encenação toca um tema atual, que enche páginas de jornais a propósito da eleição do presidente dos Estados Unidos.
Podem os jornalistas contar quantas mentiras o candidato republicano proferiu por discurso. O certo é que o impacto, produzido nos auditórios, teve um efeito suficientemente duradoiro para que ganhasse as eleições. Apesar de, entre mentiras e muito show off, ser evidente o risco para a democracia e a liberdade nos Estados Unidos, aparentemente, alguns só o descobriram após o ato eleitoral.
A verdade dos factos desinstala e faz-nos olhar a realidade tal como ela é e não como é mais conveniente. Esta dualidade de posições, entre quem faz ciência e quem tem o poder político ou económico, não deveria ser contraditória, se o conhecimento fosse considerado a base das decisões, mesmo que difíceis e contrárias aos interesses instalados.
Atitudes como, "não se fala nisso", "mais tarde se verá" ou "não é oportuno por enquanto", comprometem a construção de uma sociedade democrática.
É certo que a mentira vende e até faz ganhar eleições, mas certamente que não constrói ou defende a humanidade.
(artigo publicado no Açoriano Oriental 15 Novembro 2016)