O desafio da escrita
Quando temos dentro de nós a vontade de viver, de dizer ao mundo o que pensamos, não há idade ou condição que possa ou deva impedir essa vida de brotar. Tarde ou nunca, é o que adiamos ou aquilo que desistimos de fazer ou de ser.
Hoje, agora, é o momento para sermos, o tempo que nos oferece a vida para transformar o que sentimos e pensamos em escrita, no cuidado com que tratamos uma planta do jardim, no pormenor que imprimimos num bordado, na realização de uma receita, nas palavras com que acariciamos a existência.
Nunca é tarde para se ser o próprio e deixar uma marca.
Saramago é nesse sentido um exemplo. Assumiu que a sua vida não iria ficar reduzida a dois registos de nascimento e de óbito, como bem retratou no seu livro “Todos os nomes”, nem se limitaria à situação profissional que o curso de serralheiro lhe daria. Por isso, escolheu mergulhar em outros tempos e noutros mundos, em busca de personagens e emoções.
A leitura das obras deste Nobel escritor é uma descoberta, que nos transporta para uma outra dimensão da existência, onde se respira a liberdade de criar, ser e inventar. Não é evidente, não se vislumbra num primeiro olhar, para muitos, ilegível. Faltam os pontos e as vírgulas, falta o regulamento da escrita.
Mas, quando se vence as primeiras linhas dos seus textos, é como se atravessássemos uma cascata de água. Ler Saramago é ultrapassar esse desafio, libertar-se de regras, preconceitos e abrir os olhos a um outro mundo, que nos oferecem as páginas dos seus livros.
Descobri as cores do Alentejo e o grito calado dos alentejanos da sua infância, em “Levantados do Chão” e nas “Pequenas memórias”. Convivi com as figuras dos evangelhos, lado a lado com um Jesus do seu tempo, na obra incompreendida, “Evangelho segundo Jesus Cristo”. Senti o peso do trabalho árduo e as crenças dos homens que construíram o convento de Mafra, lendo o “Memorial”; a angústia de uma cidade onde a cegueira se alastra como praga e faz emergir uma humanidade despojada, no “Ensaio sobre a Cegueira” ou o labiríntico viver urbano, da “Caverna”.
A emoção destas viagens era por vezes tão forte, que tinha de fechar o livro, tal a intensidade das imagens que lia.
Saramago pinta as palavras com cores e recheia com emoções e odores os adjectivos, para nos fazer mergulhar num mundo, que se revela por detrás da “cascata” da sua escrita.
Os seus últimos livros, “A Viagem do Elefante” e “Caim”, proporcionam viagens mais curtas, mas onde o escritor mantém a mesma capacidade descritiva, numa ficção que incomoda, desnuda a realidade e obriga a pensar. Como disse Saramago, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A vida não pode ser apenas existir, porque só faz sentido quando a transformamos em experiência, emoção e desafio.
Deus, Jesus Cristo, a fé são temas relevantes na obra deste escritor que alguns teimam em rotular de ateu, herege. Nas suas páginas, explora-se a dúvida e questiona-se o sentido da existência humana que não é apenas matéria, mas que, como ele próprio afirmou, termina num metro quadrado de terra.
Tomara muitos dos que se dizem crentes assumirem com a mesma frontalidade, desassossego interior e desassombro, este confronto que diariamente coloca, frente a frente, a humanidade e o transcendente.
(publicado no Açoriano Oriental, a 28 Junho 2010)