Morrer às mãos do marido
Não é um título sensacionalista. Infelizmente é uma realidade dramática que, segundo o Observatório das Mulheres assassinadas, atingiu 39 mulheres em Portugal no ano de 2010. Vítimas de agressões brutais de um actual ou anterior companheiro, marido ou namorado, de quem esperavam apoio, protecção e a quem um dia juraram amar e ajudar.
No início destas histórias de horror, só havia silêncio. Muitas desculparam as agressões de que eram vítimas, na esperança de que seria um mal passageiro. Mas nada mudou. Se num dia eram maltratadas porque o marido chegava a casa mal disposto; no outro o motivo passava a ser a comida, que eles consideravam mal feita; no dia seguinte eram acusadas de gastar demais e as culpas iam-se acumulando, triturando a vontade de viver e a auto-estima.
Não faltou quem visse e até estranhasse, mas receou intervir. Alguém disse ou escreveu que “entre marido e mulher, não se meta a colher” e talvez por isso, amigos e familiares fazem de conta que não sabem, partindo do pressuposto que um dia aquela mulher, manifestamente infeliz, vai acabar por se entender.
Histórias de humilhação silenciosa e de agressões, cada vez mais violentas, marcam as vidas destas mulheres que, ainda hoje morrem às mãos dos companheiros. Vítimas de um crime público morrem como seres sem cor, tão esfarrapadas como a rodilha com que limpavam a casa.
No dia do seu funeral, alguém comenta que sempre soube que a vizinha era maltratada, mas nada fez, porque sempre a viu acompanhar os filhos à escola, estender a roupa e fazer as compras na mercearia da esquina. Aparentava uma rotina normal e sofria calada, porque lhe ensinaram que tudo se deve fazer pelos filhos.
Morreram às mãos dos companheiros, que há muito tinham perdido essa condição quando quiseram tornar-se donos das suas vidas, ao ponto de lhes roubarem a dignidade. Diziam eles, que os ciúmes eram prova de amor e que, se controlavam a vida delas, era por muito as amar. Aos poucos acabaram por viver num cerco sem saída, num cativeiro sem liberdade, sujeitas a um sacrifício sem recompensa.
Tentaram quebrar o muro de silêncio que lhes foi imposto, mas ninguém parecia preocupar-se, porque não acreditavam possível, que aquele homem, tido por um cidadão exemplar no emprego, pudesse ser um agressor no espaço doméstico.
Morreram às mãos dos maridos, porque ainda falta coragem para denunciar um crime que ocorre portas adentro, silenciando a voz de muitas mulheres e, cada vez mais, atingindo idosos e crianças indefesas.
Morreram, também, porque elas próprias não se atreveram a denunciar, quando ainda era tempo, por julgarem ser sina, destino, a cruz que todos diziam ter sido uma escolha.
Não há justificação possível para que um namorado, companheiro ou marido agrida, mesmo quando essa agressão vem disfarçada de gracejo humilhante, cena de ciúmes, ou desvalorização de desejos ou opiniões.
O amor não mata, salva; não destrói, antes constrói laços; não magoa mas cura e reabilita. Por isso, ninguém deve e muito menos merece ser maltratado.
Se conhece alguém que é vítima de violência conjugal, denuncie. É um dever cívico que pode evitar a morte de mais mulheres.
(publicado no Açoriano Oriental, 29 Novembro 2010)