Perder
É voz corrente dizer-se “não gosto de perder, nem a feijões”.
Perder é a antítese da posse, do acumular, do ter.
E, por muito que valorizemos o espírito de serviço e dediquemos a vida ao bem-estar dos outros, dificilmente conseguimos fugir da tentação de procurar a felicidade pelo caminho da posse, do ter mais.
Acumular, comprar, possuir, apropriar-se são ações que dão uma sensação de poder e, até, de algum prazer. Um prazer egoísta que faz esquecer as dificuldades ou as necessidades dos outros.
Não significa isso, que o poder, em si mesmo, seja negativo. Ele é necessário, faz parte da organização da vida e das relações humanas; é imprescindível no processo político, fundamental na relação educativa, no respeito pelas regras, no controlo dos comportamentos daqueles que põem em causa a segurança e o bem comum.
Mas o poder quando se associa à posse, é demolidor. Querer dominar aqueles sobre quem se exerce esse poder, querer ser dono daquele que é objeto dos afetos, querer se apropriar das qualidades ou controlar a liberdade dos que de si dependem de alguma forma, destrói essas relações, os afetos, reduz os outros a objetos de coleção e, em vez de libertar, encerra o mundo, aprisiona as pessoas num egoísmo estéril.
Por isso, nem sempre perder é assim tão negativo. Até pode ser libertador, quando o que deixamos ir é esse sentimento de posse que em nada nos adianta na relação que estabelecemos com as pessoas ou com as coisas.
Perder pode ser uma experiência de enriquecimento interior quando, dessa forma, aprendemos a conviver com os outros e com o mundo sem intenção de os possuir, e descobrimos na partilha a forma mais verdadeira de viver o amor, sem procurar dominar nem se apoderar.
Ninguém gosta de perder, “nem a feijões”, mas se pensar que, perdendo, também ganha, então isso deixa de ser traumatizante. Sobretudo, quando aprendemos a perder a posse dos outros e descobrimos o valor da sua estima, os afetos mais puros, genuínos, livres e espontâneos.
Nada do que utilizamos é verdadeiramente nosso, no sentido em que possamos incorporar nas nossas vidas.
Apropriamo-nos dos alimentos, da casa, das roupas, dos instrumentos de trabalho, para viver, mas nada disso faz sentido se não formos capazes de amar, de devolver em vida, em atos, em serviço, em pensamentos, ideias e afetos.
É amando os outros, a vida, a natureza que nos tornamos humanos.
Nada nos pertence em absoluto.
Quando olhamos para trás no tempo, podemos fazer o balanço de duas formas, pelos ganhos ou pelas perdas.
Pelo lado do ganho, reconhecemos as escolhas que fizemos, os acontecimentos que nos fizeram crescer, as pessoas que amamos e que nos ajudaram a ser quem somos hoje.
Se apenas as perdas lembrarmos, então a vida parece uma sucessão de erros, um falhanço absoluto, um desperdício.
A perda pode sempre ser superada por ganhos, por isso sem negar as rupturas que nos marcaram, sem esconder os sofrimentos que nos fizeram amadurecer, importa que cada um de nós aprenda a contar a sua história a partir do que aprendeu com essas perdas e sofrimentos, e descubra o que ganhou sempre que a vida o fez perder.
(Crónica lida na Rádio Atlantida - no programa de Graça Moniz - 9 Novembro 2014)