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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Aleluia

A natureza parece gritar a vida na primavera. Faça frio ou chuva, a natureza não precisa de alertas, mensagens ou avisos, para fazer rebentar as novas folhas nas árvores ou florir o jacinto que ficou na terra desde o ano passado.

A natureza conhece, sente os ritmos e sabe quando renascer.

De um tronco ressequido, que o vento desbastou, nasce uma folha! Até mesmo quando ninguém se lembrou da poda, na altura certa, como manda o "borda d'água"...

Mesmo assim, a primavera acontece.

Do chão empedernido, mal regado, num canteiro esquecido do quintal, brota uma flor singela.

Aleluia, é o grito que se ouve na primavera. O que parecia morto voltou à vida, as árvores que ninguém cuidou, apesar disso, deram flor e prometem frutos para o verão.

Aleluia, há sempre uma réstia de esperança quando todos julgavam perdida aquela terra, há sempre uma semente que rebenta no seu seio, ganhando força onde parecia haver, apenas, ervas daninhas.

Eis que brota um pessegueiro, no meio de silvas e mato. Terá sido um caroço atirado em fim de tarde, uma raiz antiga? não importa. Do meio do nada, a vida floresce de novo, resiliente, quando ninguém dela cuidou, resistente, aos ventos e tempestades.

Aleluia, a vida vence sempre a destruição. A força interior, que se esconde numa terra empedernida, é maior que a camada ressequida que a cobre.

Há sempre um tempo para renovar e mesmo que ninguém a convide, a primavera volta, com a certeza de que tudo pode recomeçar.

Regressa, mas não é a mesma de outros anos. Não! Esta é nova, uma nova primavera. Outras passaram, por ventura sem que nos dessemos conta. Mas agora, está de novo aí, rebentando as folhas nas árvores secas, florindo tocas esquecidas, enterradas, rasgando a terra que nunca mais foi regada, a não ser pela chuva. Ela está aí, gritando Aleluia.

Aleluia é um grito de vida, que rompe a morte e vence a terra seca.

Há sempre uma força contida que faz recuperar o sentido, retoma esse ciclo interminável, do viver e morrer, do nascer e florir, para dar fruto e renascer.

Aleluia é essa força que os cristãos celebram na Páscoa, mas que nem todos reconhecem como renascimento. Presos ao espírito de sexta-feira, preferem desistir, porque a terra secou e dali nada pode vir de novo.

Voltados para dentro, calcam a semente que começava a rebentar, impedindo que a luz e o orvalho façam o milagre do renascimento.

Aleluia, abre os olhos, a vida acontece mesmo quando julgamos que nada mais podemos sentir. Ela surpreende, quando menos esperamos, sentados num canto da casa, agarrados ao inverno que aconchegamos à pele.

A vida, qual semente esquecida num canteiro abandonado, é essa força interior que fala baixinho e te acorda do marasmo. Olha, abre a janela, vê o sol que nasce no horizonte, pisa o chão, descalço, e sente como a terra te acolhe. É isso, a vida não nos cobra por primaveras passadas, não contabiliza o que não lhe demos ou o que esquecemos.

Aleluia, esta é uma nova primavera, um convite para renascermos, retirando ervas, pedregulhos que dificultam esse rebento que acabou de florescer no meio do teu canteiro ressequido.

Vê, tens um jacinto amarelo no jardim que brotou daquela toca esquecida, esperança contida numa semente, que deixaste abandonada a um canto.

Aleluia, acorda, a primavera está aí e, se não lhe dermos atenção, ela volta a passar, mais uma vez, sem que floresçam as sementes que insistem em rebentar nos canteiros da vida.

Aleluia!

(texto publicado no Açoriano Oriental, 24 Março 2105)

 

Memórias

A vida é um cais onde, todos os dias, chegam e partem pessoas.

Enquanto vivemos preocupados com os estudos, o emprego, as relações de poder ou os ganhos, nem sempre nos damos conta dessas movimentações e mal nos apercebemos das emoções que atravessam o cais da vida.

Não sabemos o dia nem a hora, mas quando nos cabe a vez, de olhar a partida de alguém que nos é próximo e querido, pisamos o cais de olhos alagados, acenando com um lenço branco, uma viagem sem regresso.

De coração pesado, procuramos no cais o baú das memórias.

Memórias de momentos, vivências, gargalhadas e tantos risos.

Tempos onde éramos mais crianças.

Na beira do cais, assistindo a mais uma partida sem retorno, sentimos quebrar um laço, dessa cadeia onde nos incluíram quando nascemos. Uma cadeia que refazemos sempre que outros chegam ao cais, para se ligarem às nossas vidas.

De olhos postos no baú das memórias, recordamos o tempo em que olhávamos os mais velhos da família, como os "grandes", os crescidos, com quem aprendemos a ser, a ter um nome, uma identidade, ouvindo as suas histórias que também eram a nossa própria história.

No cais da vida, reveem-se as memórias de vidas, sonoridades, imagens que nos transportam para outros lugares e outros tempos.

Embrenhados nesse regresso ao passado, a boca enche-se de sabores antigos, de temperos, e as narinas parecem inspirar cheiros e aromas.

O tempo fica congelado e tudo se torna diferente na memória de um segundo, onde não há partidas, nem chegadas, mas apenas vivências.

Memórias. Quando nos despedimos de alguém que parte, para não mais regressar, fica no cais da vida um baú de memórias, um livro de uma vida, uma roupagem diária. Afinal, tudo o que importa para os que ficam no cais está ali.

Missão cumprida, viagem agendada por quem não pergunta se temos ou não disponibilidade para a fazer. É hoje, agora.

E quando menos se espera, abandona-se o baú das memórias, o livro escrito durante anos, que outros julgavam ter mais páginas para escrever; acabam-se as rotinas de simpatia e atenção ao outro: bom dia Sr. João!

No cais, na hora da despedida, são muitos os que folheiam o livro e encontram os traços mais fortes dessa história. Momentos de dor, mas também de força, palavras sensatas e alguns desesperos. Laços feitos e desfeitos, palavras ditas ou silenciadas que lemos, em memória, para fazer a memória de alguém.

Afinal, o que é a vida se não encher um baú de memórias, que se partilham com outros, para depois deixar no cais. O que é a vida se não encher um livro de vivências, umas de dor outras de alegria, umas ponderadas e calmas outras intensas e emotivas, e abandonar tudo isto na hora da despedida.

No cais da partida, não é preciso bagagem, nada é preciso, nem mesmo o baú das memórias ou o livro escrito numa vida.

Aos que ficam no cais sim, essa é uma herança preciosa, para que possam retomar a cadeia de laços, e continuar a construir família.

Para os que ficam essas são as memórias, que não se perdem e que, mesmo perdendo a cor, que o tempo sempre retira às imagens, continuam sendo parte do laço que um dia nos recebeu à chegada, quando alegres nos acolheram.

No cais da vida, há sempre alguém que parte, deixando atrás um baú de memórias e um livro escrito, uma vida.

 (texto publicado no Açoriano Oriental, 10 Março 2015)

Romaria interior

Já se ouvem, ao fundo da rua, as vozes que cantam Avé Maria.

São vozes masculinas, habituadas a outras músicas e falas. Vozes que, habitualmente, até não são de frequentar muito os templos, nem se juntam por altura das domingas do Espírito Santo para rezar o terço.

Mas, quando chega a Quaresma, e sabe-se lá porquê, sentem uma vontade de viver a romaria, partilhando em espírito de comunidade uma experiência diferente.

Os romeiros, tal como os conhecemos em São Miguel, são sem dúvida uma manifestação de fé, de profunda relação do homem com a Natureza e com o divino. Aliás, reza a história que terá sido o medo das manifestações da terra que levaram a comunidade, inicialmente de Vila Franca a implorar salvação, por via da oração. E assim nasceu uma tradição, que percorre as capelas e igrejas com invocação a Maria ao redor da ilha.

Romeiros, homens de xaile e lenço, saca ou cevadeira às costas e bordão de ponta dourada numa mão, desfiam contas de um rosário, que é símbolo das suas vidas e de tantas pessoas por quem vão passando.

Eh irmão? Quantos são?

Eh irmãzinha, somos oitenta.

Irmão, peço-vos uma Avé Maria pelo meu filho!

E assim, ao mesmo tempo que se encomenda uma oração, fica a obrigação de rezar tantas avé-marias quantos os irmãos que iam no rancho. Oitenta, pois, é isso, oitenta avé-marias pelo meu filho! Que Deus o proteja por terras do Canadá!

A romaria faz-se em oito dias de caminhada, em redor da ilha de São Miguel. Uma volta que segue sempre o sentido dos ponteiros do relógio. Uma viagem que atravessa todos os concelhos, tocando as famílias que se encomendam aos irmãos romeiros ou que os acolhem para a dormida.

Um alguidar com sal, para descansar os pés; uma refeição quente e uma cama, no melhor quarto da casa, são uma bênção para o romeiro e uma graça para a família.

Antes de partir, ainda o sol não nasceu, o irmão romeiro deixa um terço rezado pelas intenções da família .

Esta não é certamente a melhor forma de conhecer a ilha de São Miguel. A Romaria, no dizer de muitos que a fazem, é sobretudo uma viagem interior, em que se para para pensar, se reavaliam decisões e atitudes e se assume uma condição de simplicidade e sobretudo, de fraternidade.

Durante oito dias, dezenas de homens vivem como uma irmandade. Não há engenheiro ou doutor, pedreiro ou camponês. São todos irmãos, todos iguais, numa relação de aprendizagem e descoberta. À frente, o mestre, um irmão com muitas romarias nos pés, dita as orações e as paragens.

Romaria interior, viagem ao mais profundo do ser, na descoberta do essencial. Afinal, todos nós, vivemos cobertos de vestes que nos escondem, nos fantasiam de pessoas importantes, e nos fazem esquecer o essencial.

Reencontrar o mais importante implica, quase sempre, deixar atrás os títulos, o supérfluo e acessório.

O essencial mora no interior de cada pessoa. E poder refletir sobre isso, numa viagem difícil, por vezes mesmo dura, à chuva e ao vento, pode ser uma experiência intensa e transformadora.

A romaria quaresmal parece ter contagiado outras terras, onde não era a tradição, mas que certamente terão encontrado nesta prática, uma forma de vivenciar a espiritualidade na intimidade de si mesmos.

Talvez porque vivemos numa sociedade pouco dada ao silêncio e à oração, os romeiros são uma demonstração clara, como todos nós, homens e mulheres, precisamos de parar para podermos olhar para dentro e pensar, quem sou eu? O que faço aqui? O que é que me move e dá sentido à vida?

Fazer uma romaria interior é uma viagem à descoberta de respostas, por vezes difíceis de aceitar. Mas é aí que tudo pode mudar, porque só quem conhece pode escolher... só quem sente pode reconhecer....

(texto lido na rubrica "Sentir a ilha" do programa "Entre palavras" de Graça Moniz - Radio Atlantida) 1 Março 2015

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