Silêncio desconcertante
Fixo os olhos no presépio, naquelas figuras que, todos os anos, desembrulho das folhas de jornal para as colocar nos lugares de sempre, iluminadas delicadamente pela chama de uma vela. E sinto, sinto o silêncio desse lugar, onde a história do nascimento de Jesus reatualiza a mensagem da simplicidade, do despojamento e da ligação à natureza e aos mais simples, os pastores, de joelhos ofertando cordeiros.
Este silêncio é desconcertante! Porque desmancha barreiras, desfaz muros de vergonha, solta rios de emoção contida e desperta sentimentos de solidariedade e atenção aos outros, todos os outros, os que nos rodeiam ou já partiram, os que conhecemos e aqueles que gostaríamos de conhecer.
Mas, para sentir este silêncio que desconcerta e perturba, não podemos fugir, nem procurar preencher esses momentos com ruídos e luzes.
O silêncio liberta vozes interiores! Por isso, pode ser revolucionário, quando esse diálogo interior aumenta a consciência das injustiças e reforça a dignidade.
O silêncio desconcerta mas, nem sempre ouvimos essas vozes quando é maior a vergonha, o medo e a falta de apoio e segurança. Particularmente a voz das mulheres que foram ou são vítimas de crimes sexuais, num mundo que desculpabiliza os agressores, machos ativos, dominadores impulsivos, para quem o corpo da mulher é um mero objeto de satisfação.
Uma voz ergueu-se para quebrar esse silêncio de vergonha, a de Nadia Murad, uma jovem iraquiana, de 25 anos, da minoria muçulmana Yazid, torturada e violada, juntamente com outras 3000 mulheres, algumas ainda adolescentes, usadas como escravas sexuais por grupos armados do autointitulado "Estado Islâmico".
Pela coragem de denunciar, Nadia recebeu o Nobel da Paz 2018, juntamente com Denis Mugweve, médico ginecologista congolês, que já cuidou de mais de 50 mil mulheres vítimas de violação.
Nadia não quis calar os horrores de que foi vítima, não por ela, mas por todas as mulheres que são usadas e abusadas, como estratégia de guerra. Destruídas, estas mulheres não podem mais ser mães, refugiando-se no silêncio da vergonha. Mas, como disse Mugweve, este não é um problema de mulheres, mas da Humanidade. Somos todos responsáveis por não ouvir o silêncio destas vítimas!
O silêncio desconcerta, desfaz as barreiras interiores! Mas, se uns fogem das emoções que isso provoca, procurando alienar-se no consumo e nos ruídos, outros fecham-se na vergonha e no medo, incapazes de denunciar e mostrar o quanto as injustiças e a violência destruíram a sua dignidade.
Neste terminar de ano, regressemos ao silêncio e deixemo-nos levar pela força que quebra cadeias, desmonta defesas e faz soltar a emoção, contida no interior e, tantas vezes, disfarçada em faz de conta: "está tudo bem", "não é nada", "não te preocupes comigo!!!!".
Este é o tempo da verdade, dos sentimentos mais genuínos, da partilha de emoções.
Afinal, não é todos os dias que,
num recanto da casa, construímos um lugar diferente,
onde podemos parar e olhar a luz da vela;
Sentir o cheiro do cedro e dar espaço ao silêncio!
Sem vergonha ou receio, chorar!
Sentindo o sabor a sal das lágrimas,
Libertar o mar de receios ou angustias,
Dúvidas e inseguranças, e sorrir!
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental a 25 dezembro 2018)