Apetece brincar
Apetece estar no exterior, no jardim ou no campo, deixar o dia correr sem pressa e aproveitar a luz do sol, que se põe mais tarde.
Apetece brincar, viver aventuras, livres da pressão da escola e dos deveres, poder imaginar aventuras, fazer de conta e descobrir os segredos da terra que se transforma em ingrediente de cozinha ou material de construção.
Recordo os bichos de conta, no quintal da minha avó, que se transformavam em pacientes de um hospital de campanha ou do baloiço instalado junto à arrecadação, que imaginava povoada de seres medonhos. Entre os desafios e os receios, imaginados, a brincadeira virava aventura e, aos poucos, ia enfrentando os medos do crescimento.
Brincar é muito mais do que passar o tempo entretido. É uma descoberta permanente, onde se desafiam capacidades, se estimula a imaginação e se aprende a enfrentar os limites, ao mesmo tempo que se descobre o sabor da liberdade.
Dizem os pedagogos que brincar estimula o desenvolvimento cognitivo e contribui para o aumento da autonomia e da capacidade de resiliência do ser humano.
Sem dúvida que, ativar o corpo e o cérebro imaginando cenas e personagens, transformando aquelas folhas que caíram das árvores em ingredientes de cozinha ou fazendo da caixa de cartão o esconderijo perfeito, só podem libertar a mente de constrangimentos e reforçar a capacidade individual.
Infelizmente, muitos pais transformaram o direito a brincar num dever da escola; ali é que se brinca, nos escorregas do recreio ou no campo de jogos. Chegados a casa, acabou! É o tempo do banho, do jantar e da cama. Nem se dispõem a contar aquela história, onde não faltam cenas inventadas, que acrescentam imaginação ao texto do livro. E esqueceram a canção para adormecer, uma música que, mesmo em adultos, recordarão. Falta tempo para fazer um balanço do dia, onde se reconhecem as dificuldades e se elogiam os sucessos!
Infelizmente, tudo parece resumir-se a isso: falta de tempo, quando na realidade, o tempo é o que dele fazemos.
Nunca como hoje o tempo deu para tanta coisa. Imagine-se o que era antes, quando as comunicações se faziam por carta e era preciso um mês, para ter resposta! Ou então, quando quase tudo era encomendado, não sem antes se esperar o envio das amostras, para se poder escolher. Eram meses de espera até que uma ideia se tornasse em obra, fosse a feitura de um vestido ou a construção de uma casa.
Hoje, basta uma mensagem electrónica, uma videochamada e, na mesma hora, a tarefa fica resolvida. O tempo, hoje, dá para fazer muito mais do que antes.
Falta tempo, onde? Talvez as prioridades sejam outras!
Brincar deixou de ser uma prioridade e a preocupação dos pais é encher o horário dos filhos com inúmeras atividades, formais e organizadas, supostamente propiciadoras de um currículo melhor.
Brincar no exterior passou a ser temido, as crianças são vigiadas a toda a hora, não andam de bicicleta por medo, não sujam as mãos para manterem a imagem impecável, nem dormem em casa dos amigos, porque se receiam as diferenças de hábitos.
E, dessa forma, as crianças tornam-se, mais tarde, adultos imaturos, incapazes de tomar decisões autónomas, assumir responsabilidades ou enfrentar desafios.
Faltam memórias de quando viviam a vida a brincar!
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 25 junho 2019)