Pão por Deus
Pão por Deus, pela alma dos seus!
No dia 1 de novembro, a tradição convoca os açorianos a colocarem-se no lugar de quem vive com dificuldades e a experimentarem o sentido da solidariedade, redistribuindo, partilhando, sem esquecer os que já partiram.
Este é o espírito que anima a tradição do "Pão por Deus", nascida da prática da esmola aos pobres, por intensão das almas, e intensificada com a coincidência histórica de, na véspera do dia dos fieis defuntos (2 de novembro), Lisboa ter sido arrasada por um terramoto em 1755.
Nos últimos anos, esta tradição foi sendo esquecida, porque a condição socioeconómica das famílias melhorou e a mendicidade, em parte, desapareceu, o que não significa o fim da pobreza mas, por ventura, do seu rosto mais severo.
Hoje, ninguém pede pão pelas portas! Pede-se dinheiro para pagar a conta da luz ou da água. Mas ainda há quem invoque "a alma dos seus", quando agradece uma dádiva.
Há nesta tradição do Pão por Deus uma dimensão, que está para além das dádivas, o facto de significar partilha e solidariedade entre vivos, lembrando aqueles que nos antecederam. É um momento do ano em que a família humana se alarga aos que já partiram, ao mesmo tempo que alerta para a existência de todos aqueles que vivem com dificuldades e que moram ao lado, na mesma freguesia.
O Pão por Deus, na medida em que nos lembra a solidariedade e a humildade, dificilmente pode ser substituído por outras práticas. Mas foi! Até podem ter a mesma raiz cultural, o culto dos mortos, mas, nessa transição, perdeu-se o sentido do pedir, do partilhar, e ficou apenas o valor atribuído ao ato de receber que, não se concretizando, confere o direito de importunar e molestar (doçura ou travessura).
Estamos longe da tradição açoriana, porque esquecemos o que nos ensinaram ou transmitiram as gerações passadas.
Mas podemos recuperar a prática do Pão por Deus, se nos reencontrarmos com a sua dimensão simbólica.
Desde logo, o uso da saca de pano, feita de retalhos, aproveitamento de roupas ou tecidos, como se fazia no passado, reciclando, recuperando e reutilizando, uma máxima que parece recente, mas que tem raízes muito ancestrais.
Depois, o ato de pedir pão que, no passado era feito propositadamente para este dia, mas que também era substituído por outros ingredientes: castanhas, milho ou até batatas. Hoje, parece difícil que tal se recupere, mas podíamos dar fruta, por exemplo, e evitar o exagero na dádiva de guloseimas, que são prejudiciais à saúde.
Finalmente, o sentido da partilha. As dádivas não eram apenas para quem as recebia, mas destinavam-se a outros, à família, aos mais velhos, que viviam com dificuldades. O pedinte era apenas o rosto de uma comunidade pobre, esquecida, que, invocando as almas dos que partiram, estimulava o sentido da partilha e a necessidade de redistribuir as riquezas para combater as dificuldades dos que menos tem.
O desaparecimento da saca de retalhos do Pão por Deus, significa a recusa em reconhecer a pobreza, o lugar dos mortos na comunidade dos vivos e a necessidade de redistribuir recursos. No seu lugar ficaram as abóboras, as vestes de bruxa e uma noite de fantasia onde as crianças recebem guloseimas.
Abandonou-se a humildade do "dar e partilhar", para dar lugar à ânsia do "receber e guardar".
(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 29 de outubro 2019)