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SentirAilha

Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

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Viva! Este é um espaço de encontro, interconhecimento e partilha. Sentir a ilha que cada um é, no mar de liberdade que todos une e separa... Piedade Lalanda

Uma justiça injusta

No passado dia 21 de setembro o tribunal do Porto ilibou dois indivíduos acusados de violação de uma jovem de 26 anos, que ocorreu nos sanitários de uma discoteca em 2016, alegando ter havido "sedução mútua", apesar de o texto do acórdão referir que os arguidos estavam cientes do estado de inconsciência da vítima.

A conclusão a que chegaram os juízes foi de não existir ilícito elevado por não terem ocorrido danos físicos, nem violência, uma vez que, estando inconsciente, a vítima não reagiu às agressões. Nas palavras da Secretária Geral da Associação dos Juízes " Quando não se demonstra a existência de violência, não podemos entrar no crime de violação."

Como pode haver sedução quando alguém está inconsciente? O que se entende por violência? Brutalidade!? Força física!? E, violentar sexualmente alguém inconsciente, só porque não ofereceu resistência, não é violação?

Os argumentos utilizados neste acórdão revelam um país que ainda não saiu, totalmente, da visão retrógrada de que à mulher cabe servir o homem, mesmo contra vontade.

Neste caso, a situação agrava-se por se tratar de um estabelecimento noturno, onde as mulheres são "isco" para atrair clientes masculinos e o assédio ou o abuso sexual são naturalizados, espectáveis. Cabe às mulheres, sobretudo as mais jovens, que frequentam esses espaços, moderar os seus consumos, se querem manter a sua respeitabilidade e feminilidade.

No que toca aos homens, os excessos de linguagem, de consumo e de comportamento são permitidos e até estimulados. Esta é uma das conclusões do estudo que está a ser realizado pela socióloga Cristiana Pires (Univ. de Coimbra). Às raparigas exige-se que se auto-protejam, evitem andar sozinhas, não consumam em excesso, nem usem roupa que possa ser considerada mais provocante porque, se algo lhes acontecer, serão rapidamente consideradas como as únicas ou principais responsáveis.

No espaço noturno, como refere a autora, o bar é dos homens, a pista de dança, das mulheres.

A vida noturna, à luz destes padrões de comportamento, reflete uma sociedade desigual. No entanto, este duplo padrão moral, do que se aceita para o homem e não se aceita para a mulher, não pode ser transposto para os tribunais.

O discurso dos magistrados, mesmo que dificilmente seja neutro, não pode por em causa direitos de cidadania, direitos humanos, respeito pela dignidade. A função de um juiz é defender quem é vítima de crimes, em particular, quando estes refletem abuso e dominação de pessoas em situação de vulnerabilidade, como foi o caso da violação da jovem inconsciente numa discoteca do Porto.

A justiça tem de pautar-se pela defesa dos direitos de todos, independentemente do sexo, da condição ou da situação.

Infelizmente o acórdão do tribunal do Porto é mais um, entre muitos outros, que reproduz desigualdade de tratamento de homens e mulheres perante a lei.

A confiança nos tribunais exige que estes atuem com justiça, defendam quem é vítima e saibam punir quem desrespeita os direitos humanos.

De cada vez que um juiz iliba um agressor, a confiança na Justiça fica mais débil e aumenta o receio de denunciar.

Uma sociedade que tem medo de denunciar é uma sociedade injusta.

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 2 Outubro 2018)

O (des)acórdão

Muito se escreveu e disse sobre o acórdão do tribunal da Relação do Porto que desagrava um crime de violência doméstica, alegando adultério por parte da mulher vítima.

Políticos, movimentos cívicos, articulistas em diferentes jornais teceram comentários ou simplesmente repudiaram o referido acórdão, alegando o retrocesso civilizacional que o mesmo representa.

A este movimento de repúdio, manifestações de rua e até uma petição com mais de 18 mil subscritores, os responsáveis da Magistratura reagiram tarde, com incómodo e alguma resistência corporativa, afirmando que estas reações não prestavam "um bom serviço nem para a justiça, nem para a defesa das vítimas", como referiu o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Nas suas palavras as sentenças dos juízes exigem, e cito: "sobriedade e vigilância semântica" e "a manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações da linguagem de subjetividade excessiva, não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência."

A violência doméstica é um crime público desde 2000 (Lei 7/2000 de 27 de Maio que alterou o Código penal), mas só em 2007, por força da Lei 59/2007 de 4 de Setembro, foi introduzido o crime de violência doméstica. Ainda mais recente, a Lei 19/2013, de 21 de fevereiro estabelece o Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à Proteção e à assistência das suas vítimas. Foram precisos muitos milhares de agressões e de mortes até que a sociedade portuguesa reconhecesse que, agredir não é um direito que assiste a maridos ofendidos ou esposas traídas, e que as vítimas não são objetos sobre quem se tenham direitos de posse.

O quadro legal que materializa esta defesa é recente, mas nada justifica as posições mais brandas que a Justiça teima em proferir, perante um crime doméstico, familiar, por ventura naturalizado em muitas casas e numa cultura onde ainda se diz: "quanto mais me bates, mais gosto de ti".

No crime de violência doméstica, há um substrato cultural, profundo, uma raiz violenta que mina as relações de género e condiciona o pensamento e as atitudes.

Mas nada justifica o (des)acórdão do Tribunal do Porto e a demissão da Justiça portuguesa perante os crimes de violência doméstica. Basta ler o relatório anual de monitorização da violência doméstica do Ministério da Administração Interna, de 2015, para verificar que, dos 34mil inquéritos de violência doméstica analisados entre 2012 e 2015, 78% resultaram em arquivamento, 4,7% em suspensão do processo e apenas 17,5% deram lugar a uma acusação. Recorde-se, a propósito, que apresentar queixa por maus tratos é, infelizmente, um sinal de exaustão de alguém que carrega uma vida de agressões. A lei protege as vítimas, permite condenar os agressores e não é preciso que haja "nódoas negras" para o fazer.

Certamente, que todos os juízes sabem os códigos penais, quase de cor. Mas, em alguns casos, falta-lhes formação em ciências sociais e humanas.

Os planos de estudos (Ex. Faculdades de Lisboa e Porto) abordam todas as espécies de Direito (Constitucional, Romano, Família, Internacional, Administrativo, Processual, Penal, Fiscal, Civil ...) mas esquecem que, os advogados e os juízes precisam de formação em Psicologia e Sociologia, para não agirem em função dos seus "estados de alma" e "crenças pessoais".

Não basta saber escrever, nem um acórdão é uma mera questão de semântica, como referia o Presidente do Supremo. Estão em causa valores e representações sociais, que não são forçosamente as do cidadão juiz, mas que enformam o sentido das leis que terá de aplicar.

Um juiz não faz a Justiça de um país, mas um (des)acórdão pode fazer a diferença entre o silêncio e o acordar da consciência cívica desse país.

(texto publicado no jornal Açoriano Oriental de 31 Outubro 2017)

 

Humanizar o poder judicial

Tem sido notícia a entrega, por ordem do tribunal, de uma menina de seis anos ao pai biológico, depois de sempre ter vivido com os pais adoptivos.

Um caso entre muitos outros, que veio despertar na opinião pública o debate sobre a adopção e, sobretudo, abriu um pouco as portas dos tribunais que muitas vezes decidem sobre a vida das famílias.

Protegidos pela lei, por artigos de um qualquer código, os juízes interferem não apenas no destino de crianças, pais e famílias inteiras, como condicionam modelos culturais, alguns contestados pela própria sociedade, mas ainda sem reflexo na lei.

Escolher entre os laços de sangue ou os laços afectivos; privilegiar o pai ou mãe na relação parental; aceitar o acolhimento da madrinha ou da avó, são decisões que por vezes competem aos juízes, nem sempre suportadas por pareceres fundamentados de especialistas em ciências humanas e sociais. Não esqueçamos que na formação universitária de um jurista não abundam disciplinas científicas destas áreas, lacuna que pode contribuir para o distanciamento com que por vezes aplicam a lei. Alguns terão mais sensibilidade do que outros, mas a compreensão da dimensão psicossocial dos casos não pode depender do senso comum do juiz.

Parafraseando uma frase bíblica, o homem não foi feito para a lei, mas esta sim, deve servir e organizar a vida humana. Quando a lei revela ser desajustada é porque os homens e a sociedade mudaram e certamente os modelos de referência são outros.

Por exemplo, se considerarmos as sentenças em situações de divórcio, é recorrente o juiz dar a tutela parental à mãe, com visitas periódicas ao pai que deverá, para além disso, entregar uma pensão de alimentos. A inversa acontece, mas é raro e quase sempre implica uma luta judicial por parte dos pais que querem ficar com a guarda dos seus filhos. 

Em casos de adopção, a questão é outra, para além da dimensão materna, valorizada como uma relação de valor superior a todas as outras, a tendência do poder judicial é a de sobrevalorizar os laços de sangue aos laços afectivos.

O caso que tem sido notícia é bem disso exemplo. Depois de abandonada pelo pai e entregue para adopção pela mãe, eis que a justiça entende ser adequado que esse pai, que não cuidou da filha, tenha uma segunda oportunidade, porque apesar de tudo é o genitor.

Referem os juízes que está em causa o “superior interesse da criança”, mas muito fica por dizer quando esses juízes procuram dar sentido ao que entendem ser esse interesse da criança, raramente ouvida, ao sentido de superior, que implica hierarquizar necessidades e, sobretudo, quando decidindo em nome da criança valorizam as condições e os pressupostos dos adultos.

Os tribunais quando confrontados com casos de adopção, regulação do poder paternal, entre outros domínios que afectam as relações familiares, têm de ser humanizados, ou seja, não bastam as leis para se fazer justiça, é cada vez mais importante saber contextualizar e basear a sua aplicação numa análise psicossocial e cultural da realidade em que se inserem as famílias. Em alguns casos é a própria lei que deve ser revista, à luz dos novos papéis e das novas relações que constroem as famílias actuais.

(Artigo publicado no Açoriano Oriental, 8 Outubro 2007)

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